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Transformações sociais nos séculos XVI – XIX: os principais impactos da Reforma Protestante para a formação da sociedade moderna.


 
A Igreja Católica, na Idade Média, era uma instituição extremamente poderosa. Era conhecida neste período como a “Senhora Feudal”, pois era a maior proprietária de terras da Europa. Sua influência extrapolava em muito o campo religioso e adentrava a guerra, a política e a economia. Influenciava decisivamente várias áreas do cotidiano humano desde o funcionamento dos Estados até os assuntos de ordem familiar e individual. A Igreja Católica enriqueceu a partir de um complexo mercado de arrecadação de fundos, que incluía, além da renda dos feudos, os quais foram recebidos como herança ou doação, também da venda de indulgências e relíquias religiosas. Essa riqueza toda foi usada na expansão do número de igrejas, monastérios e obras grandiosas como a da basílica de S. Pedro, o que aumentou ainda mais a sua influência. Tudo isso, aliado à vida luxuosa e imoral dos clérigos. No campo econômico, a doutrina católica, de origem tomista, afirmava que a salvação ocorre mediante as obras que o cristão pratica, o que possibilitou o enriquecimento da Igreja, pois muitos interpretavam boas obras como doações de todos os tipos à igreja. A mesma doutrina condenava o lucro e a cobrança de juros (usura), o que representava um obstáculo ao nascente sistema de acumulação capitalista.

Com o renascimento comercial, o consequente enriquecimento da burguesia e a sua associação com os reis, começaram a surgir os Estados Nacionais absolutistas, com economia do tipo mercantilista. O descontentamento popular com os exageros do clero, os limites impostos pela igreja católica à atividade econômica lucrativa (comércio e finanças) e a concentração de poder político nas mãos da Igreja acabaram unindo povo, burguesia e nobreza contra a Igreja Católica.

Neste cenário favorável à mudança, surge a Reforma Protestante iniciada pelo monge alemão Martinho Lutero e que propunha uma nova doutrina baseada na salvação do homem de acordo com a sua fé. Com a invenção da imprensa, a bíblia traduzida para vários idiomas e as ideias de Lutero rapidamente se espalharam pela Europa e outras reformas protestantes ocorreram, com o surgimento de outras religiões protestantes: o calvinismo, de João Calvino (França/Suíça) e o anglicanismo de Henrique VIII (Inglaterra).

Dentre os fundamentos da doutrina luterana podemos destacar:

- A salvação não se alcança pelas obras, mas sim pela fé, pela confiança em Deus e pelo sofrimento interior;

- O culto religioso foi simplificado, baseando-se nos salmos e na leitura da Bíblia;

- Valorização do contato entre o fiel e Deus, dispensando-se o clero como intermediário.

- Manutenção de dois sacramentos: o batismo e a eucaristia (comunhão), e no ritual da eucaristia, acreditava-se na presença de Jesus no pão e no vinho, negando a transformação do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo (transubstanciação pregada pela Igreja Católica).

Dentre os fundamentos do calvinismo podemos salientar:

- A aceitação da bíblia como única fonte da verdade;

- a exclusão do culto aos santos e às imagens;

- o combate ao celibato clerical e à autoridade papal;

- a manutenção dos sacramentos do batismo e da eucaristia;

- a justificação da usura e do lucro através da predestinação absoluta (Deus já havia escolhido aqueles que iriam para o Paraíso e aqueles destinados à danação nas chamas do Inferno, bastava para isso observar a sua condição social: Deus estava do lado daqueles que tivessem posses, já os outros...).

A doutrina calvinista teve grande aceitação entre os representantes da classe ascendente, a burguesia, na medida em que valorizava aspectos de seu interesse, tais como o trabalho e o acúmulo de riquezas.

A reforma anglicana, diferentemente da luterana e da calvinista, não pode ser considerada tão radical, na medida em que manteve normas e rituais católicos, acrescentando-se, entretanto princípios calvinistas. Na Igreja Anglicana, o chefe da igreja era o rei da Inglaterra e não mais o Papa.

A Reforma Protestante, rapidamente difundida com a ajuda da imprensa, proporcionou o desligamento do Estado do domínio da Igreja Católica, representado pelo poder papal. Permitiu, ainda, aos reis protestantes confiscarem as propriedades da Igreja. Os reis passaram a arrecadar os impostos que eram dirigidos à Igreja e fortaleceram ainda mais o seu poder que deixou de ter como fundamento a vontade de Deus.

A classe social mais beneficiada com a Reforma Protestante foi, no entanto, a burguesia. A doutrina protestante, notadamente a calvinista, não só permitia o lucro e a usura, como também valorizava a acumulação e a ostentação de riqueza como sinal de aprovação divina.

A sociedade ocidental que emergiu desse processo estava mais aberta ao racionalismo e, portanto, ao desenvolvimento das ciências, uma vez que houve uma valorização do ser humano como sujeito de sua própria existência, já que para a Igreja Católica, todos os fenômenos podiam ser resumidos como sendo a vontade de Deus.

Essas mudanças permitiram a eliminação de vários obstáculos de ordem sócio-cultural que limitavam o desenvolvimento do capitalismo que, a partir da Reforma Protestante desenvolveu-se por todo o mundo ocidental. Esta relação entre doutrina protestante e capitalismo foi analisada por Max Weber no livro “A Ética Protestante e o Desenvolvimento do Capitalismo”.

 

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