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O Jardineiro Fiel: uma breve análise do filme à luz do imperativo categórico de Kant.

A primeira cena do filme mostra o assassinato brutal, ocorrido no interior do Quênia, de Tessa, uma ativista política casada com Justin, um diplomata inglês de segundo escalão e jardineiro por hobby. Inconformado com a morte da mulher e com a inércia das autoridades locais e de seu próprio consulado, Justin passa a investigar as circunstâncias em que ocorreu o assassinato. A ativista suspeitava de uma trama macabra envolvendo uma indústria farmacêutica europeia, além de autoridades do Quênia e do próprio governo inglês. Justin, a partir de arquivos de computador e documentos encontrados entre os objetos deixados por Tessa, descobre que quenianos miseráveis estavam, sem seu conhecimento e consentimento, sendo usados como cobaias em experimentos com um novo fármaco. Muitas dessas pobres pessoas morriam após ingerirem o medicamento. As autoridades locais e a empresa dificultavam o acesso ao local e aos parentes das vítimas. A empresa privada e os governos envolvidos tinham interesse no desenvolvimento do medicamento já que isso iria proporcionar a criação de mais de mil empregos diretos. Tessa foi assassinada para não completar sua investigação. Justin completa o dossiê e, por meio de um amigo, o entrega às autoridades. Terminada a sua missão, volta ao Quênia com a intenção de se suicidar. Antes disso, porém, é assassinado brutalmente, talvez pelos assassinos da esposa.
Sintetizado o enredo do filme, tratemos de relacioná-lo ao imperativo categórico de Kant. Para Freitag Apud Cataneo e outros, p.31:
As leis fixadas pela vontade legisladora do homem racional orientam-se segundo
duas categorias de valores: o preço e a dignidade humana. O preço representa para
Kant um valor exterior e a manifestação de interesses particulares, ao passo que a
dignidade representa um valor interior de interesse geral. A legislação elaborada pela
razão prática que visa ao interesse de todos não pode ter como valor fundamental
o preço, mas sim ter como valor fundamental a dignidade humana. Esse valor é
transformado em finalidade última pelo imperativo categórico. (Cataneo e outros, 2013)

Podemos observar nesse filme a ocorrência de conflitos éticos. De um lado temos a empresa farmacêutica, o governo do Quênia e o próprio governo inglês os quais se utilizaram de seres humanos para suas pesquisas científicas, com o único objetivo do lucro. Dentro de uma ética utilitarista, “a de buscar sempre em nossas escolhas o maior bem para um maior número de pessoas”, poder-se-ia dizer, em que pese o caráter claramente ilegal daquelas ações, que pode ser aceitável a morte de alguns miseráveis que morreriam cedo de qualquer maneira, seja de fome ou por falta de condições sanitárias, em troca do desenvolvimento mais rápido de um medicamento que poderia melhorar a saúde de milhares de pessoas e, ainda, criar empregos e, principalmente, enriquecer os empresários e membros dos governos envolvidos. Já Tessa e, posteriormente à sua morte, também o seu marido Justin, trilharam um caminho ético diverso. Mesmo não estando diretamente envolvidos na situação, refletiram racionalmente sobre a questão e agiram como cidadãos que pensam no bem coletivo, na dignidade humana, acima dos seus próprios interesses individuais e das vantagens econômicas que os poderosos e seu próprio país poderiam obter. Os protagonistas do filme fazendo uso da razão e, conscientemente ou não, do conceito moral do imperativo categórico de Kant, defenderam a dignidade humana daqueles estrangeiros miseráveis mesmo tendo que pagar com o sacrifício da própria vida por isso.

Referências:
CATANEO, Marcelo Evangelista; BARTEL, Márcio Renato; SHULZE, Carmelita. Ética Moderna e Contemporânea. Palhoça: Uniul Virtual, 2013.


O JARDINEIRO FIEL - título original: The Constant Gardener; gênero: drama; duração: 02 h 09 min; ano de lançamento: 2005; estúdio: Focus Features / ScionFilmsLimited / PotboilerProductionsLtd.; distribuidora: Focus Features / UIP; direção: Fernando Meirelles.

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