Pular para o conteúdo principal

O processo de Gentrificação: O caso da construção do Estádio Arena Corinthians (Itaquera – São Paulo – SP)

Introdução
           O presente trabalho pretende conceituar o fenômeno urbano conhecido como gentrificação, assim como apresentar um breve estudo bibliográfico de caso, partindo de trabalhos acadêmicos e artigos especializados sobre o tema. Escolhemos, para isso, as transformações ocorridas no bairro paulistano de Itaquera no processo de concepção e construção do Estádio Arena Corinthians, apelidado à época da construção de “Itaquerão”, onde ocorreu a abertura da Copa do Mundo FIFA de 2014 e vários jogos daquela competição.
Conceito de Gentrificação
            O termo gentrificação é derivado do inglês gentrification, que, em inglês pode ser traduzido como: “bem-nascido”. O termo foi utilizado pela primeira vez em 1963, pela socióloga britânica Ruth Glass, em um artigo cujo tema eram as mudanças urbanas na cidade de Londres (Inglaterra). Ela criou o termo para se referir ao “aburguesamento” do centro da capital inglesa como consequência da ocupação, pela classe média e alta londrina, dos bairros operários. Usou para isso o termo “gentry”, bem-nascido, para se referir àquelas classes sociais (MARTINS, 2014, p.1).
           Observamos que há pequenas variações, entre os autores consultados, no que se refere ao conceito de gentrificação. Adotaremos o de Andréia Martins que contém os demais:
A palavra gentrificação (do inglês gentrification) pode ser entendida como o processo de mudança imobiliária, nos perfis residenciais e padrões culturais, seja de um bairro, região ou cidade. Esse processo envolve necessariamente a troca de um grupo por outro com maior poder aquisitivo em um determinado espaço e que passa a ser visto como mais qualificado que o outro” (MARTINS, 2014, p. 1).
               A expressão gentrificação teve, inicialmente, uma conotação positiva, mas à partir dos anos 80 passou a ter uma conotação mais negativa. Num primeiro momento a palavra apontava para os melhoramentos significativos que ocorriam em áreas urbanas abandonadas ou degradadas após processos chamados de reurbanização ou revitalização de espaços urbanos. Posteriormente observaram-se os pontos negativos desse processo, que promoveria um urbanismo excludente, no qual as camadas sociais mais pobres são expulsas das áreas centrais ou de maior interesse imobiliário, em uma forma disfarçada de higienização social (MARTINS, 2014, p.1).
            Muitas áreas de uma determinada cidade crescem aleatoriamente, sem planejamento, muitas vezes através de invasões ou crescimento descontrolado de loteamentos imobiliários em áreas periféricas. Essas áreas possuem quase sempre infraestrutura deficiente, como falta de tratamento de esgoto, asfalto e transporte público de qualidade. Com o tempo as áreas centrais crescem e se descentralizam invadindo essas áreas periféricas ocasionando uma ressignificação dessas regiões, com uma valorização dos espaços e uma especulação imobiliária e modernização dos espaços com a construção de equipamentos voltados a uma outra classe social. Rodolfo F. A. Pena define bem essa situação:
“É nesse contexto que a gentrificação ocorre, pois as áreas antes desvalorizadas passam a ter um custo muito alto, ao passo em que a população residente nesse local é gradativamente substituída por um perfil comercial ou de grupos sociais mais abastados. Com isso, a paisagem modifica-se, e as zonas, que antes eram só guetos, barracos e pobreza, transformam-se em condomínios, prédios e casas de médio e alto padrão.
No entanto, é importante considerar que a transformação desses espaços não representa necessariamente uma mudança no padrão de vida da sociedade, haja vista que a população mais pobre, ao emigrar dessas regiões, passa a habitar outras localidades, geralmente ainda mais periferizadas. Essa ocorrência é chamada de segregação urbana (PENA, 2016, p.1).
           
            Martins destaca os principais resultados da mudança que o processo de gentrificação provoca em um espaço:
1)     a reorganização da geografia urbana com a substituição de um grupo por outro;
2)     a reorganização espacial de indivíduos com determinados estilos de vida e características culturais;
3)     a transformação do ambiente construído com a criação de novos serviços e melhorias;
4)     a alteração de leis de zoneamento que permita um aumento no valor dos imóveis, aumento da densidade e uma mudança no perfil socioeconômico. (MARTINS, 2014, p.1)

No mundo, especialmente na Europa, Canadá e Estados Unidos, há vários exemplos desse processo de gentrificação. Foram identificados, segundo Bataller, vários fenômenos de gentrificação nas seguintes cidades: Berlim, Magdeburgo, Londres, Budapeste, Nova York, São Francisco, Santa Fé, Nova Orleans, Atlanta, Pittsburg, Detroit, Filadelfia, Vancouver, Montreal e Toronto (BATALLER, 2015). No Brasil, há vários exemplos, mas podemos destacar dois deles: Favela do Vidigal no Rio de Janeiro, de acordo com Pena: “historicamente formada a partir de invasões, constituída por barracos amontoados e sem estrutura, esse local vem recebendo novas casas de luxo formadas por pessoas ricas que buscam a área visando à bela visão do alto do morro” (PENA, 2016, p.1) e em São Paulo, a ressignificação de áreas na sua zona leste após a construção do estádio de futebol utilizado durante o megaevento da Copa do Mundo de Futebol de 2014. São dois exemplos com características diferentes, uma vez que o caso carioca foi levado a cabo pela iniciativa privada através do setor imobiliário e o paulistano, no qual vamos nos fixar, foi objeto de ação do Poder Público.
Segundo Felipe V. Oliveira, havia já, antes mesmo da construção do estádio de futebol de Itaquera, alguns projetos de urbanização na região, caracterizada por uma grande quantidade de moradias populares verticalizadas. A primeira obra de vulto foi a construção de um terminal e garagem do Metropolitano de São Paulo (metrô), em 1989. Em seguida outras obras foram feitas como o prolongamento da av. Radial Leste, a construção da av. Jacú-Pêssego, a interligação da região do ABC com a Rodovia Airton Senna, etc. Nesta época já havia o esboço do Polo Institucional de Itaquera. A idéia era atrair indústrias e serviços para as margens dessas avenidas com o objetivo de gerar emprego na região e reduzir o fluxo de pessoas do bairro dormitório de Itaquera para o centro da cidade. O Polo Institucional de Itaquera incorporou equipamentos que estavam construídos ou em construção e o estádio de futebol. Os equipamentos previstos são basicamente os seguintes: terminal do metrô e suas garagens, o Poupatempo (megacentral de serviços do Governo do Estado), Shopping Metrô Itaquera, Forum, Rodoviária, Fatec (facultade de tecnologia do Estado de SP), SENAI, Incubadora de Empresas e Laboratórios, Centro de Convenções, Batalhão da Policia Militar e outros investimentos privados. Embora todos esses equipamentos estivessem previstos, foi o megaevento da Copa do Mundo que possibilitou empréstimos das três esferas de governo e investimentos para que o Estádio Arena Corinthians fosse construído e vários dos equipamentos previstos saíssem da fase de projeto e se tornassem realidade (OLIVEIRA, 2015, p. 135-150).
Os efeitos dessas intervenções vêm sendo sentidos desde a inauguração do terminal do metrô, mas os pesados investimentos nos novos equipamentos e, principalmente, o estádio de futebol provocaram, quase que imediatamente, a aceleração do processo de gentrificação como podemos verificar no texto de Arthur L. Goerck:
“As justificativas dadas para tal fato foram distintas. Primeiramente deve-se chamar atenção para a noção de que muitas pessoas decidiram vender ou alugar seus apartamentos e sair de Itaquera por conta da oportunidade financeira que a valorização da região trouxe, como as frases a seguir mostram: “Hoje tem muita placa de vende-se, se você anda por ai, e o pessoal ta vendendo por causa do valor. Quem pagou 60 mil e hoje vale 250 mil, ta querendo vender”(Entrevistado, J, 31 anos, COHAB 1); “Hoje você vê muita placa de vende-se. tem muita gente que ta indo embora daqui”( Entrevistado A, 65 anos, COHAB 1); “Tem muita gente indo embora, porque quem sempre sonhou em vender o apartamento pra comprar uma casa, agora é a hora”( Entrevistado M, 55 anos, COHAB 1)” ” (GOERCK, 2014, p.49-50).    
Verifica-se, portanto, que após a construção do estádio, os preços dos imóveis subiram até 300% (trezentos por cento). Observou-se, ainda, uma mudança radical nas expectativas relacionadas à vida das pessoas no bairro, como no trecho a seguir, do trabalho de Goerck:
“Ao mesmo tempo, no que se refere às justificativas para a saída de moradores de Itaquera, não foi apenas a oportunidade financeira gerada pela construção do estádio que os influenciou, o que se viu também foi que muitos decidiram vender seus apartamentos por conta de um grande pessimismo com as mudanças que a região passaria. Em sua visão, a Arena Corinthians alteraria a dinâmica social de uma maneira tão extrema que o lugar perderia suas características típicas de tranquilidade e sossego, dando lugar à “bagunça” e “baderna”. Chama-se aqui atenção ao fato da frequente utilização destes termos pelos entrevistados poder ser fruto da influência midiática. “Acho que também tem muita gente indo embora porque aqui também vai deixar de ser um bairro sossegado, o sossego acabou pra gente né” (Entrevistado M, 55 anos, COHAB 1); Quem tem a oportunidade ne, nao gosta de barulho ta indo embora. (Entrevistado A, 65 anos, COHAB 1); . Aqui no prédio tem muita gente saindo porque acha que esse campo vai ser uma baderna (Entrevistado B, 68 anos, COHAB 1). 
Independente das justificativas dadas pelos moradores, o fato é que o movimento imobiliário em Itaquera teve um aumento significativo e os valores, tanto para aluguel quanto para venda dos apartamentos, subiram muito. As visitas às imobiliárias do bairro demonstraram que a compra e venda destes imóveis se deu principalmente nos momentos prévios à Copa - no momento da 1a rodada deste PIBIC - e que no período da 2a e 3a rodada, as vendas diminuíram e quase pararam. Tiveram inclusive moradores da COHAB que compraram apartamentos como um investimento futuro, acreditando em uma ainda maior valorização da região. Além disso, deve-se dizer que o principal tipo de movimentação imobiliária que ocorreu na COHAB 1 foi o aluguel de apartamentos, que tinham grande procura mesmo com os altos preços, em torno de R$800 a R$1000” (GOERCK, 2014, p.49-50)
Apesar do processo de gentrificação observado em Itaquera estar ocorrendo há um certo tempo, conforme as intervenções estatais vão sendo feitas e estimulando a especulação imobiliária, verificou-se uma intensificação desse fenômeno após a construção do estádio de Itaquera, a Arena Corinthians.
Conclusão
            Considerando-se as limitações deste trabalho, conceituamos o processo de gentrificação e apresentamos um exemplo recente do fenômeno na cidade de São Paulo, a construção do estádio Arena Corinthians, que produziu, ainda durante a sua construção e continuará a produzir, uma vez que o fenômeno é bastante dinâmico, todos os efeitos característicos da gentrificação. Substituição de um grupo social de renda menor por outro de classe social superior, em função dos novos equipamentos construídos e do aumento do custo de vida (aluguéis, condomínios e serviços em geral). Reorganização espacial dos indivíduos em função da alteração da vida cultural do bairro com a consequente criação de novos serviços. Valorização dos imóveis e mudança do perfil socioeconômico do bairro.
            Parece-nos que esse processo ainda vai evoluir muito, uma vez que o projeto de instalação do Polo Institucional de Itaquera ainda está longe de ser concluído, restando ainda a construção do Fórum, da incubadora de empresas, do SENAI, etc. A construção do Estádio Arena foi, no entanto, a ação fundamental que produziu a grande mudança que já está alterando o perfil do bairro, num processo de gentrificação tão importante que gerou vários trabalhos acadêmicos como os que utilizamos como base.

Referências bibliográficas:
BATALLER, Maria A. Sargatal. O Estudo da Gentrificação. Revista Continentes (UFRRJ), ANO 1, n.1. Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: http://r1.ufrrj.br/revistaconti/index.php/continentes/article/view/2
GOERCK, Arthur Losasso. O impacto social da construção do estádio do Corinthians no processo de desenvolvimento local do bairro de Itaquera. TCC para Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica (PIBIC) da Escola de Administração de Empresas de SP – Fundação Getúlio Vargas. São Paulo. 2014. Disponível em: http://gvpesquisa.fgv.br/publicacoes/pibic/o-impacto-social-da-construcao-do-estadio-do-corinthians-no-processo-de
MARTINS, Andréia. Gentrificação: O que é e de que maneira altera os espaços urbanos. Artigo Uol Vestibular, 2014. Disponível em: http://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/gentrificacao-o-que-e-e-de-que-maneira-altera-os-espacos-urbanos.htm
OLIVEIRA, Felipe Vieira. Itaquera para quem? Projetos urbanos e mudanças socioespaciais na periferia de São Paulo. Dissertação de Mestrado em Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades. Universidade de São Paulo – USP. São Paulo. 2015. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/100/100134/tde-18112015-152039/es.php
PENA, Rodolfo F. Alves. Gentrificação: O processo de gentrificação das cidades. Artigo Mundo Educação. Disponível em: MARTINS, Andréia. Gentrificação: O que é e de que maneira altera os espaços urbanos. Artigo Uol Vestibular, 2016. Disponível em: http://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/gentrificacao-o-que-e-e-de-que-maneira-altera-os-espacos-urbanos.htm

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Perspectivas Pedagógicas: Essencialismo, Naturalismo e Crítica histórico-social

Educação, de forma genérica, pode ser entendida como o ato de transmitir às novas gerações um determinado conjunto de valores e conhecimentos. Essa atividade educativa assume, em cada época e lugar, formas distintas. Podemos falar, assim, em diferentes pedagogias. Para compreendê-las há que se interpretá-las no seu contexto histórico e à luz dos valores e ideias que as fundamentam. Dessa maneira, na antiguidade, a pedagogia conhecida e utilizada pelos povos hindus, persas, chineses e egípcios era tradicionalista e consistia na transmissão de uma doutrina sagrada, cujo objetivo era orientar o jovem na busca da felicidade e da virtude. Na Grécia antiga, a educação como transmissão da cultura, da história e da religião era baseada na perspectiva mítica, sendo difundida através dos poemas de Homero (A Odisseia e A Ilíada). A passagem do mito à razão, através da reflexão filosófica, deu-se com os pensadores pré-socráticos e levou ao surgimento da primeira instituição de ensino com caracter...

O Jardineiro Fiel: uma breve análise do filme à luz do imperativo categórico de Kant.

A primeira cena do filme mostra o assassinato brutal, ocorrido no interior do Quênia, de Tessa, uma ativista política casada com Justin, um diplomata inglês de segundo escalão e jardineiro por hobby. Inconformado com a morte da mulher e com a inércia das autoridades locais e de seu próprio consulado, Justin passa a investigar as circunstâncias em que ocorreu o assassinato. A ativista suspeitava de uma trama macabra envolvendo uma indústria farmacêutica europeia, além de autoridades do Quênia e do próprio governo inglês. Justin, a partir de arquivos de computador e documentos encontrados entre os objetos deixados por Tessa, descobre que quenianos miseráveis estavam, sem seu conhecimento e consentimento, sendo usados como cobaias em experimentos com um novo fármaco. Muitas dessas pobres pessoas morriam após ingerirem o medicamento. As autoridades locais e a empresa dificultavam o acesso ao local e aos parentes das vítimas. A empresa privada e os governos envolvidos tinham interesse no d...

Diferenças entre o pensamento mítico e o filosófico

O pensamento mítico é uma forma de explicação e compreensão da realidade. Toda a sociedade, desde as mais primitivas, possuem seus mitos, que são narrativas, passadas de geração para geração, contendo elementos que podem ser utilizados na explicação de fenômenos naturais ou na prescrição de condutas morais. Os mitos podem ser apresentados como elaborados por ancestrais antigos, indivíduos extraordinários ou por seres ou poderes sobrenaturais. Os mitos possuem as seguintes características: - são fantasias, alegorias explicativas da realidade. Representações simbólicas e não exatas da realidade. - são maleáveis. Sua narrativa não é fixa, podendo variar de acordo com os objetivos de quem faz a narrativa. Como passam de geração para geração, vão sendo alterados com o tempo. - o mito utiliza elementos sobrenaturais para a explicação dos fenômenos naturais. Quando não há possibilidade de explicação racional para um evento, o mito como explicação sobrenatural é uma forma de amenizar ...