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O sistema-mundo: a geopolítica no pensamento de Fernand Braudel, Wallerstein e Arrighi.

Consideramos, em nossa análise, o artigo “Economia política do moderno sistema mundial: as contribuições de Wallerstein, Braudel e Arrighi”. Os estudos relativos ao sistema capitalista, compreendendo os seus ciclos de expansão e retração, o acúmulo de capital e a relação entre as regiões desenvolvidas e as subdesenvolvidas do planeta eram, até os anos 1970, fundamentados basicamente na Teoria da Dependência. O capitalismo era estudado considerando-se as relações entre os Estados ou entre os países centrais e os periféricos. A unidade de estudo era o Estado Nacional.
Wallerstein propôs, então, o conceito de “sistema-mundo”. O objetivo era tomar o sistema capitalista como um todo, como uma única unidade de análise e estudá-lo enquanto sistema social situado no espaço-tempo. O capitalismo é entendido, portanto, em Wallerstein, como um sistema social histórico complexo (ARIENTE;FILOMENO, 2007, p.105). Para Wallerstein,  o moderno sistema-mundo é, por definição do autor, uma economia-mundo capitalista, combinada com múltiplos Estados Nacionais que, juntos formam um sistema interestatal. A principal característica que dá unidade à economia-mundo é a divisão mundial do trabalho. A divisão social do trabalho não tem mais um caráter apenas funcional dentro de uma dada sociedade, tem uma dimensão axial, ou seja, espacial. Há uma distribuição da divisão desigual do produto e do trabalho entre as regiões centrais e periféricas. Os capitais apoiados pelos Estados Centrais concentram-se nas regiões centrais, mas absorvem o excedente não só gerados por seus trabalhadores, mas também parte do excedente gerado pelos trabalhadores das regiões periféricas. Isto se dá em função das cadeias produtivas dominadas pela associação empresas-Estados mais fortes em benefício de sua burguesia nacional. O conceito de centro-periferia deve ser visto dentro do sistema econômico-mundo apenas como regiões geográficas que exercem atividades centrais ou periféricas. Uma mesma região pode exercer atividades centrais e periféricas ao mesmo tempo em função do seu posicionamento nas cadeias mundiais produtivas.
A apropriação do excedente (trabalho não pago ao trabalhador, lucro) pelo capitalista extrapola a relação capital-trabalho, mas ocorre de várias formas principalmente pela troca desigual no sistema de divisão de trabalho entre o centro e a periferia do sistema capitalista.  Braudel (ARIENTE;FILOMENO, 2007, p. 113-114) criou o esquema tripartido do sistema capitalista: dividiu a vida econômica no capitalismo em três níveis ou conjunto de atividades. A camada inferior é denominada “vida material”. Refere-se às atividades do dia-a-dia, habituais e inconscientes cuja relação do homem com as coisas é orientada pelo valor de uso. O nível seguinte é chamado de “economia de mercado”.  É a vida econômica em sí, produção para o mercado. A relação entre as pessoas e os objetos é baseada no valor de troca, inclui todos os mercados, pequenos e grandes (comércio e bolsas de mercadorias e de valores). Nesse mercado há transparência e concorrência entre os agentes. Finalmente, o nível seguinte e superior, em Braudel, é o que ele chamou de “capitalismo”. É onde se encontram as trocas desiguais, onde a concorrência não tem espaço. 
Nesse nível, a concorrência tem participação reduzida no processo (ARIENTE;FILOMENO, 2007, p. 114) O capitalismo, ao longo da história, encontrou várias formas de acumular e de se expandir. Essa capacidade de flexibilidade e mobilidade levou o capital a assumir especializações (como a indústria). Na esfera capitalista, portanto, em Braudel, acima da esfera da economia de mercado, a concorrência é contornada, seja por instrumentos de mercado quando se impõe o monopólio, seja por instrumentos não econômicos (monopólio legal, diplomacia, ações militares, etc), proporcionados pelo Estado. Os capitalistas, através de sua aliança com o Estado, conseguem auferir lucros extraordinários de uma forma estável e por longos períodos, enquanto durar essa relação de forças. Essa aliança capital-Estado consolidou-se principalmente no continente europeu, a partir do século XVI.
A contribuição de Arrighi, no estudo do processo de formação e expansão do capitalismo refere-se, principalmente, ao conceito de longa duração. Arrighi percebeu que o processo de formação e expansão do capitalismo histórico não se deu de forma linear, dentro de estruturas imutáveis e relações permanentes (ARIENTE;FILOMENO, 2007, p. 117). Ao longo da história do capitalismo houve mudanças sistemáticas com processos de reorganização do sistema-mundo que alteraram a natureza dos integrantes do sistema e a maneira de se relacionar com os outros, além do modo como o sistema funciona (ARIENTE;FILOMENO, 2007, p. 118).  Este processo pode ser dividido em vários ciclos ou etapas, daí a necessidade da análise sob uma perspectiva de longa duração.
Arrighi identificou vários “ciclos sistêmicos de acumulação”, correspondentes a cada uma das etapas históricas da evolução do capitalismo. Em cada estágio histórico do capitalismo havia um complexo composto por um Estado hegemônico e os agentes capitalistas a ele ligados. Dentro desse complexo, enquanto o Estado hegemônico lidera o sistema interestatal, seus agentes capitalistas lideram as principais cadeias de mercadorias. Esse sistema garante a acumulação de capital em escala global. Cada arranjo Estado hegemônico x Agentes capitalistas representa um ciclo sistêmico de acumulação, que possui um período de existência. Arrighi identificou quatro ciclos, em sua análise de longa duração: o ciclo Genovês (1450/1630), o ciclo holandês (1630/1780), o ciclo britânico (1780/1930) e o ciclo estadunidense (1930-1945/1970) entrando em declínio nos anos 1970.
Tendo em vista a análise histórica do sistema capitalista, considerando as contribuições teóricas de Wallerstein, Braudel e Arrighi, conforme o artigo de ARIENTE;FILOMENO, podemos dizer que estamos vivendo um período de transição, com o esgotamento da hegemonia estadunidense e o surgimento de uma nova hegemonia, provavelmente a Chinesa. Nesse processo de transição observamos que a economia chinesa cresce há décadas enquanto a estadunidense encontra-se estagnada. Movimentos estratégicos das duas superpotências demonstram isso. A criação dos BRICS, por exemplo, grupo de países não alinhados com os EUA, composto por Brasil, Rússia, Ìndia, China e África do Sul. Essa união estratégica seria, se integrada, a maior economia do globo neste momento.  Autossuficiente em recursos naturais, energia (gás natural, petróleo, recursos hídricos, etc), mercado consumidor. Deve-se considerar, ainda, o movimento liderado pelo Brasil, de integração da América do Sul, com o fortalecimento do Mercosul, trazendo para o grupo a Venezuela e a Bolívia, ricas em petróleo e gás natural. O poderio militar desses países, de certa forma, equipara-se ao dos EUA e seus aliados europeus. A reação da antiga potência hegemônica é clara.  Patrocínio de golpes de estado em várias partes do mundo: América Latina, incluindo agora o Brasil, Oriente Médio, norte da África, ações na Península da Coreia e Mar da China, Paquistão e Ucrânia. Todas essas regiões são área de influência dos BRICS. O dito escândalo envolvendo empreiteiras brasileiras (Lava Jato) e a Petrobras podem objetivar a destruição dessas empresas e sua absorção pelo capital hegemônico, uma vez que essas empresas tornaram-se transnacionais e formaram um complexo Estatal-capitalista, nos moldes estudados por Arrighi e que ameaçam, juntamente com outros complexos semelhantes dos BRICS a hegemonia decadente dos Estados Unidos.

Referências bibliográficas:

ARIENTI, Wagner L; FILOMENO, Felipe A. Economia política do moderno sistema mundial: as contribuições de Wallerstein, Braudel e Arrighi.In Ensaios FEE, Porto Alegre, v.28, n.1, p.99-126, jul. 2007.

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