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A concepção platônica de amor e a filosofia.



       O conceito, digamos, popular de amor platônico seria o do amor à distância, que não se aproxima, não toca, não envolve, está embebido de fantasias e de idealização.  Esse conceito decorre do fato de que Platão acreditava na existência de dois mundos, o das ideias e o real ou sensível. O primeiro, onde tudo seria perfeito e eterno e o outro, o real, finito e imperfeito. Daí o significado de platônico, ou seja, ideal, desligado de interesses mundanos. Esse conceito, no entanto, entrou para o vocabulário popular do mundo todo com seu sentido distorcido. Platão trata da questão do amor, basicamente, no livro “O Banquete”.

       O “Banquete" é um livro de diálogos de Platão atribuído a ele mesmo e não a Sócrates, seu mestre. O pano de fundo são os sete discursos acerca do deus Eros, o deus do amor.  Os oradores foram: Fedro (jovem retórico), Pausânias (amante de Agaton), Erixímaco (médico), Aristófanes (comediante), Agaton (poeta), Sócrates (filósofo e o mais importante orador) e Alcibíades (político).

       Nesse banquete, a ideia era que cada um dos oradores procurasse definir da melhor maneira possível aquilo que seria Eros (deus grego do amor, amizade e também o belo). Durante as discussões, Sócrates diz que, na sua juventude, fora iniciado na filosofia do amor por Diotima de Mantinea, que era uma sacerdotisa. No “Banquete”, Diotima representa as ideias de Sócrates e este, as do próprio Platão.

       Num breve resumo das participações de cada orador temos: 

Fedro: coloca o Eros como um dos mais antigos deuses, que surgiram depois do caos da terra. Pelo fato de ser antigo, traz diversas fontes do bem, que é o amor de um amante. É o Eros que insufla os homens a grandes brios. Só os que amam sabem morrer um pelo outro. 

Pausânias: afirma que há mais de um Eros, dividido entre bem e mal, real e divino.

Eros não é único, pois há o Eros Celeste e o Eros Vulgar. Para ele, qualquer ação realizada não é, em si mesma, nem boa nem ruim. O mesmo se dá com o amor. Atender ao Eros Vulgar é prender-se à cobiça, à iniqüidade e aos caprichos da matéria. Para atender ao Eros celeste, deve agir segundo os cânones da justiça e da beleza celeste. 

Erixímaco: segundo ele, o amor não exerce influência apenas nas almas, mas dá, ainda, harmonia ao corpo. Tal qual a medicina, sua profissão, que procura a convivência entre os contrários, o amor deve procurar o equilíbrio entre as necessidades físicas e espirituais. 

Aristófanes: havia inicialmente três gêneros de seres humanos, que eram duplos de si mesmos: o masculino-masculino, o feminino-feminino e o masculino-feminino, o qual era chamado de andrógino. Esses gêneros foram mutilados pelos deuses, divididos, cada um, em duas metades. E a partir de então, cada uma dessas metades procura a sua outra complementar. Assim, aqueles que foram um corte do andrógino, sejam homens ou mulheres, procuram o seu contrário. Isto explica o amor heterossexual. E aquelas que foram o corte da mulher, o mesmo ocorrendo com aqueles que são o corte do masculino, procurarão se unir ao seu igual. Aqui Platão, através da fala de Aristófanes, apresenta uma explicação para o amor homossexual feminino e masculino. Quando estas metades se encontram, sentem as mais extraordinárias sensações, intimidade e amor, a ponto de não quererem mais se separar, e sentem-se a vontade de se "fundirem" novamente num só. Esse é o nosso desejo ao encontramos a nossa cara metade.  

Agaton: critica os seus antecessores, pois acha que eles enalteceram Eros sem, contudo, explicar a sua natureza. Ele diz: "Para se louvar a quem quer que seja, o verdadeiro método é examiná-lo em si mesmo para depois enumerar os benefícios que dele promanam".  Depois passa a enumerar as suas virtudes, ou seja, a justiça, a temperança e a potência desse deus.  

       Os primeiros cinco diálogos apenas enaltecem o objeto, Eros, o que provoca o pretexto para a fala da sacerdotisa Diotima que nada mais é que a fala de Sócrates, que vai tratar do Eros puramente filosófico. 

Sócrates: fala que, sendo o Amor, amor de algo, esse algo é por ele certamente desejado. Mas este objeto do amor só pode ser desejado quando lhe falta e não quando o possui, pois ninguém deseja aquilo de que não precisa mais. O que deseja, deseja aquilo de que é carente sem o que não deseja, se não for carente. Aqui, na fala de Sócrates, Platão coloca sua ideia crucial sobre o conceito de amor, onde, o que se ama é somente aquilo que não se tem. E se alguém ama a si mesmo, ama o que não é. O objeto do amor sempre está ausente, mas sempre é solicitado. A verdade é algo que está sempre mais além: sempre que pensamos tê-la atingido, ela se nos escapa entre os dedos. Essa inquietação na origem de uma procura, visando uma paixão ou um saber, faz do amor um filósofo. Sendo o Amor, amor daquilo que falta, forçosamente não é belo nem bom, visto que necessariamente o Amor é amor do belo e do bom. Não temos como desejar aquilo que temos. No mesmo diálogo, Platão ainda fala sobre a origem de Eros (através do mito narrado por Diotima a Sócrates). Eros teria a natureza da falta justamente por ser filho de Recurso e Pobreza.  Não se deve compreender o amor como absoluto, mas como relativo, pois é amor de alguma coisa. No texto, Platão retira de Eros (Amor) a condição de deus, e transforma-o em um intermediário entre os deuses e os mortais. Segundo relatos do texto de Platão e de alguns de seus companheiros, o amor é um dos maiores bens do homem (junto com a inteligência e a sabedoria); não é nem bom nem mal em si mesmo.  

       Alcibíades, o sétimo orador, procura muito mais fazer um elogio a Sócrates do que discorrer sobre o amor.  

       Na fala de Sócrates, Platão, conceitua o seu amor platônico.

       O Amor Platônico tem, então, essa característica híbrida, Eros não é um deus, nem um mortal. É o elemento de ligação entre dois pólos, completando o universo. A ligação entre a esfera humana e a dos deuses. Entre o mundo sensível e o inteligível. O amor corporal é um rudimento do amor, depois, em ordem de grandeza, temos o amor espiritual, o amor pelo conhecimento e, finalmente, o amor ao Belo, o mais elevado grau do amor. Temos aí a ligação entre o amor e a filosofia, pois sendo o amor o amor de algo, não se pode amar o que se tem, apenas é objeto de amor o que não se possui. O filósofo, então, ama o conhecimento porque não o tem, embora o deseje. Deuses e ignorantes não podem ser filósofos, o primeiro porque já é sábio e o segundo porque não o deseja ser.

 



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