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A volta das políticas econômicas neoliberais no contexto do golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016: necessidade técnica ou choque de paradigmas?

RESUMO:
     Durante o processo de impeachment da Presidenta Dilma Roussef, em 2016, veículos independentes de comunicação e grande parcela da intelectualidade brasileira e de outros países denunciaram a manobra como um golpe de estado executado pelo Parlamento, com apoio da grande mídia e do Poder Judiciário. O objetivo seria atender aos interesses da burguesia nacional, articulada com o projeto geopolítico dos EUA. Michel Temer assumiu o poder e imediatamente pôs em prática o projeto econômico neoliberal derrotado nas urnas. Sob a alegação de uma inevitável necessidade técnica, substituiu o modelo econômico neodesenvolvimentista, com forte presença do Estado, que caracterizou os governos anteriores de esquerda. O objetivo deste artigo é refletir criticamente sobre essa mudança radical de política econômica na perspectiva do pensamento de Thomas S. Kuhn. Nossa hipótese é que não se trata de uma necessidade técnica, como tenta nos fazer crer a grande mídia copartícipe do golpe, mas de um choque entre dois paradigmas da ciência econômica em que um deles foi escolhido pela nação em eleições livres e o outro imposto através do golpe.

PALAVRAS-CHAVE:
Filosofia ; Filosofia da Ciência ; Thomas S Kuhn ; Paradigmas ; Paradigmas Econômicos ; Golpe de Estado ; Golpe midiático-judicial.

INTRODUÇÃO

     A cassação do mandato da Presidenta Dilma Roussef pelo Parlamento brasileiro em 2016, com o aval do Poder Judiciário, dos militares, o patrocínio explícito da grande midia e a quase certeza de que potências estrangeiras colaboraram ativamente para esse desfecho, levou à reação de setores da intelectualidade local e estrangeira que denunciou que o processo na realidade se tratava de um golpe de estado. Um tipo contemporâneo de golpe, cujo mecanismo envolvia os vários atores citados, instrumentalizados pela burguesia nacional e potências estrangeiras com o objetivo de atender aos seus interesses econômicos e geopolíticos. Imediatamente após a posse do novo presidente, Michel Temer, o Governo Federal substituiu radicalmente a política econômica que caracterizou os governos anteriores de esquerda e implementou medidas de feições neoliberais como: a privatização de empresas estatais; propostas de reforma previdenciária, trabalhista, administrativa, tributária e educacional; perdão de dívidas de empresas que apoiaram o golpe; independência do banco central do Brasil e outras propostas diametralmente opostas ao que vinha sendo executado pela Presidenta eleita pelo povo. Todas essas medidas foram tratadas pelos grandes veículos de comunicação como sendo “tecnicamente” necessárias e inevitáveis. Uma questão de caráter científico, objetivando esvaziar as discussões sobre as medidas propostas que evidentemente beneficiariam a burguesia em detrimento do proletariado. Nossa proposta é analisar e refletir sobre esses acontecimentos sob a perspectiva da Teoria das Revoluções Científicas de Thomas S. Kuhn. A questão central a ser tratada é se, realmente, essa mudança radical na política econômica do país é uma necessidade de caráter técnico ou um choque de paradigmas científicos de acordo com os conceitos desenvolvidos pelo cientista e filósofo estadunidense.

     A primeira parte deste trabalho detalha, de forma sintética, a filosofia da ciência de Kuhn. Desenvolve os principais conceitos que serão, em seguida, utilizados como instrumentos de análise.

     Na segunda parte procuramos, a partir do pensamento de vários autores, entender a maneira como se desenvolvem as Ciências Sociais e, dentre elas especialmente a ciência econômica, nos moldes do sistema proposto por Kuhn. Procuramos entender como os conceitos desenvolvidos pelo filósofo podem ser aplicados às especificidades dessas ciências, uma vez que foram criados a partir das ciências naturais.

     A terceira parte contém um relato do mecanismo do golpe a partir dos comentários e estudos de diversos filósofos, cientistas sociais e intelectuais brasileiros e estrangeiros. Também analisa a participação efetiva dos diversos atores sociais envolvidos no processo e seus possíveis objetivos. Traça um pequeno histórico dos golpes ocorridos no Brasil e em outros países da região, inclusive no passado recente. Dá uma visão panorâmica acerca da economia e da geopolítica global dos dias de hoje. Nos parece que a posse do conhecimento genérico dos principais conceitos desenvolvidos por Kuhn e sua aplicação à Economia Política facilita a compreensão do processo que culminou com o golpe de estado e suas motivações ocultas e ocultadas pela mídia.

      Finalmente, na conclusão, desenvolvemos nossa reflexão sobre o tema a partir da filosofia de Kuhn e procuramos esclarecer ainda mais o processo que levou, a partir da tomada do poder por grupos políticos derrotados nas urnas, à implementação de uma política externa e econômica oposta àquela escolhida democraticamente pelo povo brasileiro através da eleição de Dilma Roussef. Seria uma inevitável necessidade técnica cientificamente comprovada pela Ciência Econômica ou um choque entre diferentes paradigmas científicos? Essa é a discussão que pretendemos desenvolver, sem, no entanto, objetivar o esgotamento do tema.
                                                                                                                                                     
 1 Economista, pós-graduado em Economia, Administração de Empresas e Filosofia.
   
1 – A FILOSOFIA DE THOMAS S. KUHN

     No campo de estudos da filosofia da ciência, um dos temas que se coloca é como se desenvolvem as ciências ao longo do tempo. Se de forma linear e unidirecional, através do acúmulo de conhecimento, numa perspectiva positivista de progresso contínuo, ou se esse desenvolvimento ocorre aos “saltos”, onde novas teorias substituem, através de rupturas radicais, os modelos teóricos vigentes até aquele momento.

     Para o físico, filósofo e historiador da ciência estadunidense Thomas S. Kuhn (1922-1996), o avanço da ciência se dá através de um processo que ele chama de revoluções científicas. Na sua obra magna: A estrutura das revoluções científicas (KUHN, 2011), o filósofo a partir de uma análise histórica do desenvolvimento científico elabora a teoria de que a ciência se desenvolveu através de sucessivas revoluções. Para o Kuhn, revoluções científicas são: [...] aqueles episódios de desenvolvimento não cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior (KUHN, 2011, p.125).

     Dentro dos exíguos limites deste artigo procuraremos sintetizar os principais conceitos da teoria kuhniana das revoluções científicas.  A evolução da ciência, para o autor, segue um modelo geral passando por duas fases distintas: a pré-paradigmática (ou précientífica) e a pós-paradigmática (ou ciência normal). Na fase pré-paradigmática, o estudo de um determinado campo acadêmico é uma atividade desorganizada, onde inúmeras escolas e mesmo pesquisadores independentes disputam o espaço acadêmico e desenvolvem uma enorme gama de teorias, muitas vezes contraditórias entre si. Em função desse caos, o conhecimento pouco evolui. Há um enorme desperdício de energia, como se cada pesquisador tivesse que começar sempre do início, cada qual como que reinventando a roda. Kuhn exemplifica essa fase a partir de estudos da óptica física anteriores a Newton:

Contudo, qualquer um que examine uma amostra da óptica anterior a Newton poderá perfeitamente concluir que, embora os estudiosos dessa área fossem cientistas, o resultado líquido de suas atividades foi algo menos que ciência. Por não ser obrigado a assumir um corpo qualquer de crenças comuns, cada autor de óptica física sentia se forçado a construir novamente seu campo de estudos desde os fundamentos (KUHN,2011,p.33).

     Com o passar do tempo algumas dessas escolas acabam por aglutinar-se e formar o que Kuhn chama de paradigma científico, cuja gênese pode ser sintetizada dessa forma:

Ao longo do tempo, algumas dessas escolas apresentam desenvolvimentos que podem sobressair-se sobre os demais. [...] É comum, com o passar dos anos, que acabe havendo uma confluência de ideias entre algumas dessas comunidades científicas. A partir da reunião de alguns conceitos e da sistematização de parte desse conhecimento científico vão surgindo alguns pontos comuns no debate acadêmico. Alguns compromissos vão sendo estabelecidos naturalmente, guiados por uma força invisível que vai unir cada vez mais cientistas em torno de um objetivo comum, rumando para a constituição de um paradigma. A constituição de um paradigma é uma necessidade para Kuhn, posto que, como foi dito anteriormente, ele imagina que só a partir deste momento é que se pode caracterizar a existência de uma determinada ciência (VIEIRA e FERNANDES, 2006).

     O conceito de paradigma é fundamental na obra de Kuhn. Para o filósofo, a partir da constituição de um paradigma, o campo de estudo se torna ciência e os cientistas passam a se preocupar com o seu desenvolvimento. Essa fase pós-paradigmática permite a prática do que Kuhn chamou de ciência normal, que significa para o filósofo: “a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior”. (KUHN, 2011, p.29). Em Kuhn, a prática da ciência comum proporciona o desenvolvimento do campo científico. Os cientistas passam então a se preocupar com o desenvolvimento do paradigma, abrem-se novos campos de pesquisa proporcionando o aperfeiçoamento do paradigma e agregando em torno de si novas parcelas da comunidade científica. É nessa fase que ocorre o grande desenvolvimento de uma ciência. Kuhn compara a prática da ciência normal à montagem de quebra-cabeças, isto é, dentro do paradigma existem todas as respostas possíveis para quaisquer problemas enfrentados por aquela ciência. Ao cientista resta montar as peças para obtê-las. O desenvolvimento da ciência dentro de seu próprio paradigma nos dá a impressão de que o progresso da ciência tem um desenvolvimento linear e constante. O paradigma então é transmitido às novas gerações de cientistas através dos manuais técnico-pedagógicos.

     Para Kuhn, os manuais desempenham um papel importante na estrutura das revoluções científicas, vejamos nas palavras de Vieira e Fernandes:

Os manuais, por serem os veículos pedagógicos por meio dos quais a maioria dos estudantes e/ou pesquisadores toma contato com o seu ramo da ciência pela primeira vez, proporcionam uma oportunidade ímpar de arrebatar seguidores para o paradigma vigente. O aluno aceita a autoridade do professor (pesquisador experimentado que é) e o material que lhe é fornecido rapidamente tende a aceitar os exemplos e as descrições apontadas nos manuais como sendo provas indiscutidas e indiscutíveis das teorias que lhe são ensinadas. [...] Uma consequência dos ensinamentos dos manuais é que o estudante, ao tomar contato com o conhecimento apresentado, passa a acreditar que a sua ciência progrediu quase linearmente desde seus começos , governada pelos programas normais atuais de pesquisa. Parece, assim, que desde os primeiros trabalhos, os cientistas estavam interessados em atingir os resultados que são objetos do paradigma vigente. Este pensamento é condizente com a ideia de evolução da ciência como sendo fruto de um processo cumulativo de conhecimento e descobertas. (VIEIRA e FERNANDES, 2006).

     Assim temos que, para Kuhn, é no período de ciência normal que ocorre o verdadeiro avanço da ciência. É um período de atividade constante, porém circunscrita aos rígidos limites do paradigma, que é muitas vezes confundido pela comunidade científica com a própria fronteira do conhecimento em dada ciência. Há adesão estrita dos cientistas a um paradigma. Pode haver certa flexibilidade apenas quando há a necessidade de adequar a teoria à realidade, de forma a explicar os fenômenos de forma circunscrita aos dogmas do paradigma. Ocorre, porém, situações em que certos fenômenos não podem ser explicados dentro do paradigma como se fossem peças de um quebra-cabeça. É como se faltassem peças no jogo. Quando os instrumentos teóricos do paradigma deixam de explicar certos fenômenos, os problemas deixam de ser encarados como peças do quebra-cabeça e passam a ser vistos como anomalias do paradigma. Surgem duas possibilidades, segundo Silva; “... tentar resgatar a teoria do paradigma vigente, ou seja, enquadrar a anomalia dentro dos limites do paradigma [...] ou  [...] será necessário que apareça um novo candidato a paradigma” (SILVA, 2017, p.147). Para Kuhn:[ ...] “a crise, ao provocar uma proliferação de versões do paradigma, enfraquece as regras de resolução dos quebra-cabeças da ciência normal, de tal modo que acaba permitindo a emergência de um novo paradigma” (KUHN, 2011, p.110). A crise acaba provocando o obscurecimento do paradigma e desmontando os parâmetros que regulamentam a ciência normal. Não há ciência sem paradigma, em Kuhn. Para que a ciência possa continuar a evoluir há a necessidade da constituição de um novo paradigma. Kuhn sintetiza, em sua obra, esse processo:

A transição de um paradigma em crise para um novo, do qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma. É antes uma reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações. Durante o período de transição haverá uma grande coincidência (embora nunca completa) entre os problemas que podem ser resolvidos pelo antigo paradigma e os que podem ser resolvidos pelo novo. Haverá igualmente uma diferença decisiva no tocante aos modos de solucionar os problemas. Completada a transição, os cientistas terão modificado a sua concepção da área de estudos, de seus métodos e de seus objetivos   (KUHN, 2011, p.116).

     Quando um paradigma entra em crise a filosofia é posta em evidência. A análise filosófica surge como uma necessidade quando os dogmas de um paradigma em crise não mais conseguem servir de base para a ciência normal e o caos está prestes a reinar. Kuhn toca no assunto em sua obra magna:

Creio que é sobretudo nos períodos de crises reconhecidas que os cientistas se voltam para a análise filosófica como um meio para resolver as charadas de sua área de estudos. Em geral os cientistas não precisam ou mesmo desejam ser filósofos. Na verdade, a ciência normal usualmente mantém a filosofia criadora ao alcance da mão e provavelmente faz isso por boas razões. [...] Não é por acaso que a emergência da física newtoniana no século XVII e da relatividade e da mecânica quântica no século XX foram precedidas e acompanhadas por análises filosóficas fundamentais da tradição de pesquisa contemporânea (KUHN, 2011, p.119-120).

     Dessa forma, antes da transição para um novo paradigma há um momento de crise do paradigma anterior, que não mais consegue explicar, dentro de seu conjunto de regras, os fenômenos. Abre-se assim o que Kuhn chama de ciência extraordinária que se assemelha à fase pré-paradigmática. Nessa fase os cientistas criam teorias especulativas na tentativa de explicar os eventos que o paradigma em crise não consegue. As novas teorias malsucedidas são logo abandonadas ao passo que as bem-sucedidas podem abrir caminho para um novo paradigma (KUHN, 2011, p.118). Essa transição de um paradigma para outro Kuhn chama de revolução científica (KUHN, 2011, p.125).   De forma bem sintética podemos dizer que para Kuhn a ciência não se desenvolve de forma linear e unidirecional através do tempo. O conhecimento para o filósofo, portanto, não é cumulativo, o que constitui uma profunda crítica ao positivismo lógico, para o qual o conhecimento científico obtido através de uma observação neutra e utilizando o método indutivo é definitivo.  Na teoria de Kuhn a ciência segue uma sucessão de períodos que ele chama de estrutura. Para Silva há pelo menos cinco elos nessa estrutura: “1) a fase pré-paradigmática; 2) a fase paradigmática ou ciência normal; 3) crise do paradigma; 4) revoluções científicas e, por fim; 5) mudança de paradigma”  (SILVA, 2017, p.141). 

2 – A FILOSOFIA DE THOMAS S. KUHN APLICADA ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS.

     A teoria de Kuhn foi desenvolvida a partir das ciências naturais, afinal ele era um físico. Apesar disso há tentativas de adequá-la ao universo das Ciências Sociais, inclusive às Ciências Econômicas. Uma tentativa de definir uma sequência histórica de paradigmas da Ciência Econômica, encontramos nos estudos de Silva (2017, p.158). Para ele há quatro paradigmas na Ciência Econômica. Não detalharemos tais paradigmas em função das características deste artigo. Silva classifica  as escolas Mercantilista e Fisiocrata, anteriores a 1776, como pertencentes à fase pré-paradigmática da ciência. Em 1776, com a Teoria do valor-trabalho de Adam Smith, surge o primeiro paradigma da Ciência Econômica, o neoclássico, que entra em declínio por volta de 1870. Neste ano surge o paradigma Neoclássico, com a Teoria do Equilíbrio Geral de Walras e a Teoria do Equilíbrio Parcial de Marshall, que permanece até aproximadamente 1970. Em 1929, já com o declínio do paradigma neoclássico, surge o paradigma Keynesiano à partir da Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda de Keynes, sendo este paradigma aperfeiçoado com a Síntese neoclássicakeynesiana, que entrou em declínio na década de 1970, mas permanece até os nossos dias com os novos-keynesianos e os pós-keynesianos. Na década de 1970 surge o paradigma novoclássico com a Teoria das Expectativas Racionais de Robert Lucas, que é o paradigma dominante na economia contemporânea, embora para o autor esteja sendo intensamente questionado pelos neokeynesianos e pós-keynesianos, fortes candidatos a constituírem o próximo paradigma dominante (SILVA, 2017, p.158-159). Vamos especificar em poucas linhas, em razão de sua atualidade, apenas os dois últimos paradigmas: a síntese neoclássicakeynesiana e o novo-clássico. Para isso vamos recorrer a Silva para definir dentro do possível, para os objetivos deste artigo, a síntese neoclássica-keynesiana:

[...] foi criada a síntese neoclássica-“keynesiana”. Essa modelagem insere a crença de que a economia capitalista constitui um sistema inerentemente instável e sujeito a choques de demanda frequentes e decorrentes das expectativas dos investidores no que diz respeito à eficiência marginal do capital, ou no que Keynes denominou de mudança no “animal spirits”. Diante de um choque a economia pode levar um período longo de tempo para alcançar o pleno emprego, ou seja, os mecanismos automáticos de equilíbrio são fracos, dada a rigidez de preços e salários nominais. No entanto, políticas fiscais são consideradas mais eficazes em relação à política monetária para auxiliar os mecanismos automáticos de equilíbrio. Portanto o governo tem um papel importante dentro do paradigma (SILVA, 2017, p.155).

     O paradigma novo-clássico ou neoliberal, hoje dominante, pode ser assim caracterizado em Silva:

[...] de acordo com os novos-clássicos, a economia deve ser modelada com um equilíbrio econômico. Para isso, a hipótese de flexibilidade de preços e salários torna-se uma variável chave. Assim, como Hoover (1988) observa, esta abordagem implica não só a revitalização do modo clássico de pensamento, mas também a “eutanásia da macroeconomia”. [...] Os novos-clássicos consideram uma regra de política monetária coerente com a evolução da economia real. Com essa regra, a economia poderia se direcionar para uma taxa de inflação zero sem custos de forma imediata, desde que se tenha flexibilidade de preços e salários e informações perfeitas. Diante desses pressupostos, basta que a política monetária anunciada pelo Banco Central tenha credibilidade (SILVA, 2017, p.158).

     Em apertada síntese, podemos dizer, a partir dos autores citados, que os economistas keynesianos acreditam que a economia é naturalmente instável, com preços e salários relativamente rígidos por conta dos contratos estabelecidos e que a combinação estabilidade com pleno emprego e inflação baixa deve ser alcançada com uma intervenção do Governo no sentido de estimular a demanda e gerar emprego, sem, no entanto, buscar alterações na estrutura social vigente. Para os novos-clássicos, ou neoliberais como também são chamados, o equilíbrio de preços com pleno emprego ocorre natural e automaticamente, resgatando a ideia clássica da mão invisível de Adam Smith, desde que haja total flexibilidade de preços e salários e os agentes econômicos tenham plena informação desses dados econômicos. Em outras palavras, enquanto uma escola defende um Estado com forte participação na economia direcionando recursos para a geração de empregos e estimulo à demanda; a outra prega o contrário, ou seja, um Estado mínimo que não interfira e não participe da economia e apenas garanta, com seu poder de polícia, que os preços e salários se mantenham flexíveis. Percebe-se que, nas Ciências Sociais e em especial na Ciência Econômica, há uma tendência à coexistência de paradigmas, que parece ser uma característica dessas ciências. Para Earp, é possível a adoção do conceito de paradigmas nas ciências sociais, porém com certas adaptações. Vejamos:

Para adotar as ideias de Kuhn no campo da economia teríamos que optar entre (i) considerar a economia como pré-científica e prosseguir no caminho kuhniano, ou (ii) tentar relaxar seu conceito de paradigma, afirmando que a convivência de diversos destes é uma característica das ciências sociais. A segunda dessas alternativas é a mais comum. Na verdade, o que se observa é a generalização de uma espécie de “kuhnianismo vulgar” no seio da linguagem correte dos cientistas, em que a ideia de paradigma é aplicada a qualquer conjunto de noções legitimadas por um subconjunto da comunidade (EARP, 1996, p.60).

     Podemos inferir a partir desses autores, no que concerne às ciências sociais e especialmente à Economia, que nem sempre um paradigma kuhniano sucede a outro como nas ciências naturais. É possível a coexistência de mais de um paradigma, cada um com uma força diferente em diferentes períodos e locais. Quais seriam então os fatores que levam o cientista social e mais precisamente o economista a adotar este ou aquele paradigma?

     Para o sociólogo português Boaventura S. Santos, a escolha entre alternativas teóricas, ou paradigmas na teoria de Kuhn, não se limita a critérios técnicos, de suficiência de provas, mas também a fatores externos à ciência. Assim, para Santos:

É possível, a partir de Kuhn, analisar as relações de poder dentro e fora da comunidade científica e assim esclarecer os mecanismos através dos quais se cria “consenso científico” e se orienta o desenvolvimento da ciência, de molde a favorecer sistematicamente certas áreas de investigação e de aplicação, certas metodologias e orientações teóricas, em desfavor de outras. [...] As condições de sobrevivência das teorias, métodos e conceitos são estabelecidos pelo “ambiente social” em que a ciência se desenvolve. A articulação das determinantes internas e externas é o ponto crucial de uma teoria sobre alternativas científicas. As alternativas teóricas que se abrem ao desenvolvimento da ciência são caracterizadas segundo determinações teóricocientíficas com as condições culturais, sociais e econômicas, e é a partir dessa correlação que há de obter a explicação para a opção entre alternativas. [...] A determinação resulta de fatores que se afirmam como externos, e opera através de um complicado sistema de seleção entre alternativas, o que constitui, de fato, o darwinismo científico. [...] Tende a impor-se a alternativa que melhor corresponde aos interesses dominantes da sociedade. [...] De todo modo, começa a tornar-se claro que qualquer linha de desenvolvimento científico a ser adotada significa o cancelamento de linhas alternativas. O processo de conhecimento é também um processo de desconhecimento a um nível muito mais real do que as antecipações filosóficas (Kant, por exemplo) deixavam prever. A ciência pode ser alternativamente analisada (e usada) como sistema de produção de conhecimentos ou como sistema de produção de ignorância. [...] As condições teóricas do trabalho científico (modelos teóricos, metodológicos e conceptuais) não só evoluem historicamente como a sua aceitação e modo de aplicação num certo momento depende do grupo de cientistas com mais autoridade no seio da comunidade científica. Desse modo, as condições teóricas são verdadeiras normas sociais em vigor nessa comunidade (SANTOS, 1989, p.137-139).

     Podemos dizer que Santos a partir da teoria de Kuhn e considerando, principalmente no caso das Ciências Sociais, a coexistência de mais de um paradigma nos demonstra que a predominância de um paradigma em detrimento de outro é influenciada não apenas por fatores internos a essas teorias, como também por fatores externos emanados do próprio ambiente social em que a comunidade científica está inserida. Santos avançando ainda mais nesta questão nos mostra que os fatores externos são, nos dias de hoje, determinantes dos rumos da ciência. Vejamos:

A ciência torna-se uma arma poderosa a serviço dos interesses da classe dominante. A sua eficiência garante-lhe o apoio exterior que possibilita um crescimento científico vertiginosamente acelerado. Nesta fase perde sentido a distinção entre ciência pura e aplicada, por um lado, e entre ciência e tecnologia, por outro. A tecnologia cientifica-se a ponto de o conhecimento científico se converter em projeto tecnológico. [...] A ciência transforma-se numa força produtiva de tecnologia e, simultaneamente, numa força produzida pela tecnologia. Nesta fase, a luta mais importante no seio da comunidade científica é pela utilização dos investimentos públicos e privados. O modo como esta luta é travada, em condições de industrialização da ciência favorece o elitismo dos “grandes cientistas” e agrava, por isso, a situação de proletarização para que é relegada a grande maioria dos trabalhadores científicos. O elitismo científico é sempre político. [...] Os vultosos investimentos envolvidos garantem um desenvolvimento teórico acelerado, mas exigem, como preço, a lealdade aos objetivos sociais. Dada a conversão reguladora, essa lealdade apresenta-se moldada em critérios de excelência profissional, mas, em última instância, trata-se de uma lealdade política ao sistema social cuja reprodução é garantida pelos objetivos sociais em presença. [...] O desvio à estrutura do poder dentro da comunidade científica é sempre vazado em termos de violação técnica dos modelos teóricos, metodológicos e conceptuais, mas tem muitas vezes uma origem política ou ideológica. O controle social exercido pelos detentores da autoridade, e portanto a repressão do desvio, é também vazado em critérios de fidelidade aos padrões técnicos, mas esconde por vezes a repressão política ou o incitamento à lealdade ideológica (SANTOS, 1989,  p.143-144).

     Nesta leitura de Santos do conceito de paradigmas científicos de Kuhn, podemos perceber que o sociólogo português demonstra que as elites políticas e econômicas que detêm o poder sobre o financiamento das pesquisas, sobre a organização das universidades, sobre a demanda por ciência por parte do Governo e das empresas, exercem profunda influência sobre o exercício das ciências e sobre os cientistas, que proletarizados, devem lealdade a seus financiadores. A ciência torna-se instrumento dessas elites para atingirem seus objetivos de classe. Esse poder externo à ciência determina o que, por que, para quê e para quem a pesquisa deve ser feita. Esse poder todo domina até mesmo o que deve ser ensinado nas universidades, através, como já pudemos ver, dos manuais “técnicos”. Determinam também, e principalmente, o que não deve ser ensinado, esquecido. Sempre de acordo com objetivos políticos e econômicos de classe, ou seja, da classe dominante.

    Para Cristovam Buarque, a Ciência Econômica evoluiu de tal forma que é possível avaliar, por exemplo, qual seria a valorização das presas de elefantes após a extinção da espécie, tendo em vista que será um produto que não será mais encontrado no mercado. Podemos imaginar que a mesma ciência poderia calcular qual seria o prejuízo da indústria farmacêutica se fosse encontrada a cura do câncer. A mesma ciência, no entanto, não teve capacidade de calcular qual seria a perda ocasionada pela extinção de uma nobre espécie animal ou, ainda, o valor das vidas humanas perdidas por doenças ainda incuráveis. Para a Ciência Econômica, a extinção de animais ou desenvolvimento de remédios que apenas permitem a administração de doenças pode gerar mais renda para o país do que salvar tais espécies ou curar doenças para salvar vidas. Os modelos econométricos podem projetar ganhos para empresas e especuladores financeiros sem qualquer preocupação de ordem ética. É assim possível considerar benéfica a destruição de ecossistemas ou a morte de pessoas. Esses absurdos são camuflados atrás de uma suposta neutralidade científica, baseada na frieza de fatos e números. Acerca da falsa neutralidade da Ciência Econômica, Cristovam Buarque nos ensina que “A pretensa neutralidade da ciência econômica faz com que os economistas transfiram para outros a responsabilidade ética por esses valores claramente absurdos” (BUARQUE, 1991, p.8). Buarque exemplifica que a falsa neutralidade da Ciência Econômica é capaz de explicar e defender absurdos como a escravidão e a destruição de florestas. Vejamos:

A antropofagia e o sacrifício ritual de animais derivariam da escassez proteica na região e da necessidade de justificar o privilégio do consumo para apenas uma parte da população. O economista-sacerdote agia para regular o funcionamento da sociedade, através de regras religiosas com razões econômicas. De certa forma, esta situação não mudou até hoje. A ciência econômica continua servindo para legitimar o comportamento dos agentes econômicos, formulando razões cuja justificativa só se explica por cultos tão ilógicos quanto aqueles das religiões antropofágicas. A mais simples das observações, por pessoa não comprometida com a lógica da economia, consegue identificar os absurdos da economia moderna. A acumulação de capital, através do trabalho escravo ou de baixos salários, é uma forma real de antropofagia; os economistas como sacerdotes astecas, conseguem explicar e legitimar todo absurdo. É a revolução industrial que liberta os escravos, mas não com base na religião ou na defesa de uma ética. Pela primeira vez se generaliza uma racionalidade independente do processo de sobrevivência, independente das necessidades imediatas da população. Construindo máquinas, o capitalismo pode dispensar mão-de-obra, criando um exército de desempregados que torna mais barato o salário do homem livre, do que o investimento na compra de um escravo. Além disso, parte desses homens livres, ao terem que comprar bens, criam um mercado de que o processo econômico necessita para dinamizar-se. [...] O capitalismo liberava a prática de qualquer atividade econômica, e era necessário aparecer uma teoria que legitimasse tal liberalidade.   (BUARQUE, 1991, p.19-20).

     Podemos considerar a partir dos textos citados que, nas Ciências Sociais e em especial na Ciência Econômica, há uma tendência à coexistência de paradigmas. Que os paradigmas atualmente em disputa na área da Economia são: a síntese clássico-keynesiana (que defende a intervenção e participação do Estado na economia) e o novo-clássico ou neoliberal (que defende o Estado mínimo/policial que apenas mantenha as condições necessárias para que a economia se autorregule, com total flexibilidade de preços e salários). Que tais paradigmas são influenciados, senão definidos mesmo, por forças externas à ciência, isto é, forças políticas e econômicas. Finalmente, que a Ciência Econômica não é neutra como aparenta ser, más, na verdade, em função destas influências externas, acaba muitas vezes, defendendo políticas econômicas eticamente absurdas para defender os interesses das classes que a financiam.

3 – O GOLPE JURÍDICO-PARLAMENTAR-MIDIÁTICO DE 2016 NO BRASIL.

     A presidenta do Brasil, Dilma Vana Rousseff, reeleita nas eleições de 2014, foi destituída do poder em 31 de agosto de 2016 em votação ocorrida no parlamento brasileiro, com aquiescência do Supremo Tribunal Federal e apoio dos grandes veículos de comunicação e das elites econômicas, sem que tivesse cometido crime algum que justificasse tal ação. Imediatamente veículos de comunicação que não compactuaram com o que foi feito e grande parte da intelectualidade do país e também do exterior manifestaram-se denunciando um suposto golpe de estado, inclusive com forte participação de potências estrangeiras. Dentre vários exemplos podemos destacar entrevistas do linguista e ensaísta estadunidense Noam Chomsky; do arquiteto, escultor e ativista pelos direitos humanos, o argentino Adolfo Perez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz em 1980 e do Filósofo e Sociólogo português Boaventura Sousa Santos que nos brindaram com entrevistas das quais extraímos alguns fragmentos:

Não há casualidades em tudo o que está acontecendo contra o governo de Dilma. Isso faz parte de um projeto de recolonização continental. Já houve experiências piloto no continente que devem ser lembradas. A metodologia é a mesma. O que aconteceu em Honduras, com a derrubada de Manuel Zelaya, e depois no Paraguai, contra o governo de Fernando Lugo, foram ensaios de golpes de Estado que não necessitam de exércitos. Basta ter os meios de comunicação, alguns juízes e dirigentes políticos da oposição para provocar a desestabilização de um governo. (ESQUIVEL, 2016).

O perfil é de um golpe parlamentar relativamente diferente daquele que aconteceu em Honduras e no Paraguai, mas tem, no fundo, o mesmo objetivo que é, sem qualquer alteração constitucional, sem qualquer ditadura militar, interromper realmente o processo democrático. [...] Nós não podemos entender o que se passa no Brasil sem uma ação desestabilizadora norte-americana, inspirada e financiada pelos norteamericanos (SANTOS, 2016).

Ela (Dilma Roussef) está sendo acusada de manipulações no orçamento, que são práticas comuns em muitos países, tirar de um bolso para colocar no outro. [...] Na verdade, nós temos a única líder política que não roubou para enriquecer a si mesma, que está sendo expulsa por uma gangue de ladrões, que o fizeram. Isso conta como um tipo de golpe brando (CHOMSKY, 2016).

     Temos, ainda, entidades de sólido prestígio que se manifestaram de maneira inequívoca contra o golpe de 2016, como o Conselho Federal de Economia, em carta aberta aos brasileiros:

O Conselho Federal de Economia vem denunciar o estado de exceção implantado no Brasil sob as ordens dos banqueiros, rentistas, setores reacionários do empresariado, do judiciário e das forças armadas, visando atender seus próprios interesses e aos de alguns países estrangeiros que almejam tomar conta das riquezas nacionais, a exemplo do pré-sal, da Embraer, da Eletrobrás e, consequentemente, da parte da matriz energética derivada das hidrelétricas, dos rios, da base de Alcântara, da Amazônia, do Aquífero Guarani e de muitas outras (COFECON, 2018).

     Para que possamos avançar em nossa análise do golpe, suas causas e consequências, torna-se necessária uma rigorosa conceitualização sobre o tema. Para isso recorremos a Álvaro Bianchi que, a partir de uma análise histórica da evolução do conceito de golpe de estado, ou coup d’etat, nos ensina que, aproximadamente em 1679, Gabriel Naudè (1679, p.110) definia coup d’etat como “aquelas ações arrojadas e extraordinárias que os príncipes são forçados a tomar em situações difíceis e desesperadas, contrariamente à lei comum, sem manter qualquer forma de ordem ou justiça, colocando de lado o interesse particular em benefício do bem público” (Apud, BIANCHI, 2016, p.114). O conceito evoluiu ao longo da história e nos dias de hoje, ainda segundo Bianchi, coup d’etat pode ser conceituado como:

O golpe de estado moderno não é um golpe no Estado ou contra o Estado. Seu protagonista se encontra no interior do próprio Estado, podendo ser, inclusive, o próprio governante. Os meios são excepcionais, ou seja, não são característicos do funcionamento regular das instituições políticas. Tais meios se caracterizam pela excepcionalidade dos procedimentos e dos recursos mobilizados. O fim é a mudança institucional, uma alteração radical na distribuição do poder entre as instituições políticas, podendo ou não haver a troca dos governantes. Sinteticamente, golpe de estado é uma mudança institucional promovida sob a direção de uma fração do aparelho de Estado que utiliza para tal de medidas e recursos excepcionais que não fazem parte das regras usuais do jogo político (BIANCHI, 2016, p.119).

     O Brasil foi palco de vários golpes de estado ao longo de sua história. O ocorrido em 1964, aplicado por militares, patrocinados pela elite industrial e multinacionais, se manteve até 1985. Podemos perceber que o processo que culminou com a destituição da Presidenta Dilma Roussef e a sua substituição pelo Vice-Presidente Michel Temer, pode, perfeitamente, ser enquadrado nesse conceito. Mas segundo vários autores o que se sucedeu no Brasil em 2016 possui características novas, embora não originais. Nos últimos anos, durante a presente década de 2010, vários golpes semelhantes foram aplicados em outros países, principalmente na América Latina. Todos eles possuem características semelhantes. Golpes que objetivaram substituir governos de esquerda do espectro político por governos de direita. Governos que utilizam políticas econômicas nacionalistas neodesenvolvimentistas  ou neokeynesianas com intervenção forte do governo no sentido de dinamizar o desenvolvimento com o controle nacional das riquezas naturais e políticas de proteção social com distribuição de renda foram substituídos por governos que aplicam políticas econômicas neoliberais, com redução do tamanho do Estado, abertura comercial, venda de empresas estatais para grupos estrangeiros, desregulamentação trabalhista e aproximação com o bloco econômico liderado pelos Estados Unidos. Os golpes ou tentativas de golpes ocorridos em países como Venezuela (várias vezes), Paraguai, Honduras e Brasil tinham esse objetivo. Outros governos neodesenvolvimentistas foram derrubados através das eleições, como na Argentina e no Chile, com ampla participação dos órgãos midiáticos e de seus respectivos sistemas judiciários e patrocínio dos Estados Unidos da América, seja diretamente através do seu governo ou de empresas privadas e fundações (ALVES, 2016).

     A mídia brasileira teve participação fundamental no processo golpista. Veículos de comunicação de massa, segundo Moretzsohn, tramaram o golpe desde o segundo turno das eleições de 2014, quando de tudo fizeram para que Dilma Roussef não as vencesse. O autor ilustra bem a ação da mídia:

É uma velha tática: trata-se de martelar uma ideia até que ela seja incorporada pelo público e apareça como expressão espontânea de uma reivindicação indiscutível, que mobiliza multidões. A imprensa, assim, ajuda a criar o clima favorável para depois colher os frutos, ao mesmo tempo em que encobre o seu próprio papel nesse processo (MORETZSOHN, 2016).

     O ataque da mídia brasileira ao Partido dos Trabalhadores no que se refere à questão da corrupção, com uma cobertura bem mais compreensiva nos casos análogos envolvendo políticos de partidos de direita, teve como objetivo permitir a chegada ao poder de grupos ligados à elite e o retorno das políticas econômicas neoliberais, depois de doze anos de governos desenvolvimentistas (Lula e Dilma). A mesma tática de desviar a atenção das questões econômicas estratégicas e focar na corrupção foi usada outras vezes no passado: como contra Getúlio Vargas, depois novamente em 1963 contra o presidente João Goulart, como podemos ver em Moretzohn:

O discurso anticorrupção é recorrente na nossa história de golpes. Sempre teve muita eficácia, pela sua capacidade de conquistar [...] Foi intensamente utilizado contra Getúlio Vargas em seu último governo. Foi apropriado por Jânio Quadros, que chegou ao poder montado na vassourinha que prometia “varrer a bandalheira”. Retornou como forma de combate aos governos do PT, primeiro com o Mensalão e, em seguida, mais vigorosamente ainda, com a Operação Lava Jato. É uma velha tática: trata-se de martelar uma ideia até que ela seja incorporada (MORETZSOHN, 2016).

     A ação dos grandes grupos de mídia esteve o tempo todo articulada com a atuação do Poder Judiciário e do Parlamento, de maioria oposicionista ao governo Dilma. Essa articulação dá nome ao tipo de golpe aqui orquestrado: “golpe jurídico-parlamentar-midiático”. Todo esse processo contou com a participação ativa, como no golpe de 1964, do governo dos Estados Unidos da América, o maior interessado na substituição de um governo neodesenvolvimentista por outro neoliberal.

     Em poucas palavras Carvalho e Guerra sintetizam a essência do golpe:

Os golpistas têm pressa em aprovar os chamados mecanismos de ajuste fiscal para efetivar um projeto de classe. É a pesada ofensiva das elites, das forças de direita, no sentido de colocar o Brasil em perfeita coadunância com esta onda de acirramento contemporâneo do neoliberalismo, a atingir o mundo, neste contexto de uma civilização do capital em crise!! É o Brasil inserido no “tsunami neoliberal global”, pela via de um Golpe de Estado, com permanentes desdobramentos (BRAGA, 2016). Trata-se, de fato, de um Golpe jurídico-parlamentar-midiático. Esta natureza do Golpe 16 configura um projeto das elites, estrategicamente construído dentro e fora do Parlamento, com o respaldo do Judiciário e apoio irrestrito da Mídia. (CARVALHO e GUERRA, 2017).

     A ação do Poder Judiciário foi bem mais explícita no golpe de 2016 do que nos anteriores, enquanto a dos militares foi mais discreta, embora tenham dado o suporte das armas. Segundo Moretzohn, a grande mídia e parte do Poder Judiciário atuaram em conjunto desde 2005, início do primeiro governo Lula, de forma a, durante supostas investigações contra a corrupção, incriminar lideranças políticas de esquerda, principalmente integrantes do Partido dos Trabalhadores. As investigações tinham uma cobertura voltada a criar heróis (de direita) e vilões (de esquerda). Juízes e policiais foram retratados como incansáveis combatentes contra a corrupção e quem ousasse defender os acusados, quase sempre sem provas, eram imediatamente taxados de coniventes com a corrupção. Moretzohn relata assim tais acontecimentos:

Com a ascensão de um grupo altamente adestrado e ideologizado de promotores e juízes, em parceria deliberada com a grande mídia, estava montado o cenário para a criminalização do petismo (e da esquerda)[...] a grande imprensa atuou majoritária e enfaticamente em dois níveis: na busca por identificar o PT à corrupção, como se esta fosse uma prática exclusiva do partido, e na fabricação da imagem do salvador da pátria, que só pode vingar quando produz o caos e o descrédito da representação da política tradicional. [...] Reproduziu, ao mesmo tempo, a lógica binária mais rasteira: quem apontasse distorções e arbitrariedades no julgamento do Mensalão, quem acusasse abusos e ilegalidades na Lava Jato e, após a aprovação do processo de impeachment, quem falasse em golpe e exigisse o respeito às regras democráticas só podia ser defensor do PT e conivente com a corrupção. [...] Não é difícil perceber a monstruosidade que essa imprensa ajuda a forjar, criando uma casta de intocáveis (2016).

     Mesmo com todo o peso da imprensa, com a ajuda do Judiciário, com o financiamento de empresários e entidades patronais e decisivo apoio externo, os governos desenvolvimentistas venceram mais três eleições no Brasil. A saída não podia ser pelas urnas, como acabou acontecendo na Argentina, por exemplo, e em outros países nos quais a ação conjunta desses setores foi suficiente para apear do poder governos de cunho neodesenvolvimentista.

     O Partido dos Trabalhadores, durante os treze anos em que permaneceu no governo federal, optou por estabelecer um “pacto conciliatório” entre as massas e setores mais progressistas das classes dominantes. Um projeto reformista de baixa intensidade, onde ocorreram inegáveis avanços no combate à fome e à pobreza extrema, aumento real do salário mínimo, manutenção da CLT, criação do marco regulatório do Pré-Sal, aumento de recursos públicos destinados à saúde e à educação, investimento em estatais como Banco do Brasil, Caixa Econômica Federa, Embraer e Petrobrás, desenvolvimento de políticas afirmativas, tanto contra a discriminação racial, como as voltadas para a população LGBT. No campo externo houve um resgate do protagonismo brasileiro, com a aproximação aos países da América do Sul, fortalecimento do Mercosul, aproximação aos países da África e Oriente Médio e, principalmente, a articulação para a criação do grupo dos BRICS, abandonando a política de alinhamento à política externa dos Estados Unidos (CARVALHO e GUERRA, 2017).

     É preciso assinalar, no entanto, que, no contexto do referido “pacto conciliatório”, as forças progressistas tiveram que se compor politicamente com outras mais conservadoras com o objetivo de garantir o necessário suporte parlamentar ao governo. Assim, acabaram por manter e muitas vezes participar de certas práticas pouco defensáveis na Administração Publica como, por exemplo, a arrecadação de caixa dois de campanha, compra de votos e outras ilegalidades do gênero. Esses fatos que antes eram veementemente condenados pelos próprios partidos de esquerda, foram utilizados, ampliados e direcionados pela mídia e pelo poder judiciário e acabou por facilitar a implantação do golpe, inclusive com apoio de grande parte da população.

     Não é possível, no entanto, compreender o mecanismo do golpe de 2016 e também dos outros semelhantes que ocorreram no mundo no período, sem considerar os interesses econômicos e geopolíticos estadunidenses na região e no mundo, em estreita associação com os interesses da elite econômica brasileira ou, em outros termos, com a nossa burguesia.

     Para o filósofo e professor de economia política internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, José Luís Fiori, primeiramente a Inglaterra e, depois da Segunda Guerra Mundial, os EUA sempre fomentaram, com a participação de setores das elites nacionais, a discórdia entre os países do chamado ABC da América do Sul, ou seja, os países do Cone Sul (Argentina, Brasil e Chile), incluindo guerras como a do Paraguai, no século XIX, a manutenção de ditaduras ao longo do século XX e, agora, os chamados golpes brancos, o financiamento de campanhas de aliados e o ataque a políticos de esquerda através da mídia. O objetivo dessa estratégia é impedir uma aliança político-econômica entre esses países, que poderia gerar um núcleo de resistência à hegemonia das potências anglo-saxônicas na região, que inclui também outros países de fala inglesa, como o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia. Manter a submissão dos países do Cone Sul e por consequência de toda a América Austral à sua política internacional é estratégico para os EUA. A união desses países poderia, a longo prazo, unificar toda a América do Sul em torno de um mesmo projeto políticoeconômico e abalar a hegemonia estadunidense na região, afetando os seus interesses estratégicos globais. A região dos países do Cone Sul é de extrema importância em função de suas terras férteis, riquezas minerais, incluindo petróleo, grande potencial energético limpo (hidrelétricas, energia eólica, energia solar, etc), Aquífero Guarani (a maior reserva de água doce do planeta) e incontáveis outras riquezas (FIORI, 2016). Fiori cita o teórico geopolítico estadunidense Nicholas Spykman que exerceu forte influência sobre os posicionamentos geopolíticos daquele país no século passado: “fora da nossa zona imediata de supremacia norte-americana, os grandes estados da América do Sul (Argentina, Brasil e Chile) podem tentar contrabalançar nosso poder através de uma ação comum […] e uma ameaça à hegemonia americana nesta região do hemisfério (a região do ABC) terá que ser respondida através da guerra” (SPYKMAN, apud FIORI, 2014).

     Essa posição estadunidense sempre foi muito clara em função de todas as suas intervenções no subcontinente ao longo do tempo e, em especial no século XX e neste primeiro quarto de século XXI. A influência do pensamento de Spykman continua viva, passando pelo ex-secretário de estado Henry Kissinger até os dias de hoje, como vemos nesta colocação de Fiori:

Sobre a América do Sul, entretanto, Henry Kissinger inovou muito pouco , com relação à visão de Spykman, sobre o potencial de ameaça para os EUA, dos países do Cone Sul. […] Kissinger seguia considerando inaceitável o surgimento de um poder hemisférico alternativo nessa região, e ainda mais, se fosse da parte de um governo de esquerda, ou comunista. Razão pela qual, apoiou e sustentou os violentos golpes militares que derrubaram os governos eleitos da Bolívia, em 1971, do Uruguai, em 1973, e da Argentina, em 1976. E existem evidências inapeláveis de que também teve injunção na Operação Condor que integrou os serviços de inteligência da Forças Armadas da Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, para sequestrar, torturar e assassinar personalidades políticas de oposição nesses países. (2014).

Para compreendermos melhor os interesses do império neoliberal comandado pelos EUA devemos inserir a nossa região no cenário geopolítico global. Os EUA fazem fronteira com o Canadá e o México. O Canadá, como dissemos, faz parte do bloco anglo-saxão (EUA, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia) e são aliados históricos. O México, assim como todo o Caribe, a Venezuela e a Colômbia são considerados zona de influência americana e, dentro da doutrina de segurança daquele país, serão sempre mantidos sob sua dependência a qualquer custo (FIORI, 2014).  Isso explica a atual insistência do governo estadunidense em usar a força e todos os instrumentos disponíveis para derrubar o governo eleito da Venezuela.

     Do outro lado do mundo China e Rússia, no início dos anos 2000, se reposicionaram dentro do cenário econômico e geopolítico de poder formando um bloco com um modelo de capitalismo estatal em confronto com o bloco representado pelos EUA e a União Europeia de capitalismo neoliberal. Estamos, portanto, desde então, diante de uma forte disputa dentro da ordem burguesa global (ALVES, 2016). Ao mesmo tempo, vários governos de esquerda chegaram ao poder na América do Sul. Assim, países como Argentina, Chile, Brasil, Uruguai, Paraguai, Venezuela, Equador e Bolívia adotaram um modelo econômico de maior participação do Estado na Economia em substituição ao modelo neoliberal. Ao mesmo tempo em que esses governos ampliaram o seu comércio intrarregional, se distanciaram dos EUA tanto política quanto economicamente e se aproximaram do outro polo de poder. Nesse cenário foi criando, inclusive o grupo dos BRICS, formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. O potencial econômico desse grupo de países é enorme se considerarmos que o Brasil integra e lidera o Mercosul, que envolve todas as grandes economias da América do Sul. Devemos salientar, nesse contexto, o projeto de criação do Banco dos BRICS cujo objetivo maior é esvaziar o FMI e o Banco Mundial, braços financeiros dos EUA e instrumentos de controle sobre a política econômica dos seus países-satélite. Com a virtual substituição do dólar como moeda de comércio internacional, o império neoliberal não teve outra alternativa a não ser a intervenção nos países da América do Sul, que considera o seu quintal. Tal ação tem a vantagem de ao mesmo tempo retomar o controle sobre a política econômica dos países da América do Sul, reafirmando a sua hegemonia sobre o subcontinente, e bloquear o avanço de China e da Rússia no tabuleiro geopolítico e econômico global.

     Boaventura Santos toca na questão dos BRICS com extraordinária clareza como podemos ver neste fragmento de entrevista concedida ao MD18 e à Universidade do Pará:

Nós não podemos entender o que se passa no Brasil sem uma ação desestabilizadora norte-americana, inspirada e financiada pelos norte-americanos. [...] Com que objetivo? Fundamentalmente com o objetivo principal de neutralizar o Brasil como um dos protagonistas dos BRICS. Os BRICS são uma ameaça extraordinária para os EUA, porque os EUA são uma economia em dependência que se aguenta fundamentalmente porque detêm importante capital financeiro e, portanto, por aceitação universal do dólar. Isto significa um ataque extraordinário ao dólar. Os BRICS chegaram exatamente a criar um banco que é uma alternativa ao Banco Mundial e, portanto, as trocas entre eles podem ou não ocorrer em dólar. Isto significa um ataque extraordinário ao dólar. Portanto, os EUA têm vindo desde algum tempo produzir uma política de neutralizar todos os países que estão nos BRICS (SANTOS, 2016).

     Não por acaso, nos últimos anos, os EUA agiram de alguma forma contra todos os países dos BRICS, seja baixando o preço do petróleo a partir de governos-fantoche como o da Arábia Saudita para prejudicar os negócios da Rússia, Venezuela, Brasil e Argentina, grandes produtores de petróleo, seja através de golpes de estado brancos ou não, seja patrocinando políticos de direita.
     As evidências não deixam dúvidas de que houve um golpe de estado no Brasil em 2016. Há, no plano interno, uma disputa intraclasse da burguesia entre o grupo que apoiava politicamente os governos desenvolvimentistas e os grupos neoliberais desejosos de uma reaproximação com os EUA. Não à toa empresas estatais e grandes grupos empresariais que cresceram nos governos de esquerda, dentro de um projeto de país que visava ampliar o mercado para empresas brasileiras com participação no mercado externo, foram punidos juntamente com políticos que participaram daqueles governos, através de operações do Judiciário e da Polícia Federal, copartícipes do golpe. Todo esse processo ocorreu sempre com o apoio da grande mídia e dos militares brasileiros, seja direta ou indiretamente. No plano externo, como vimos, foi fundamental o interesse dos EUA em retomar o controle sobre os países Sul Americanos trazendo-os novamente para a sua esfera de influência e, ao mesmo tempo, enfraquecer os BRICS, especialmente a China e a Rússia.

     De fato, imediatamente após o afastamento temporário da Presidenta Dilma Roussef, o Vice-Presidente assumiu interinamente o cargo e antes mesmo da deposição definitiva da nossa Chefe de Estado e de Governo, iniciou o que a grande mídia e os políticos de direita chamam de “reformas”, sempre no discurso dos que tomaram o Poder, “necessárias para que o país volte a crescer”. Discurso antigo, sempre empregado após os inúmeros golpes que nossa incipiente democracia sofreu ao longo da história. Mas o que seriam essas “reformas” insistentemente divulgadas na grande mídia patrocinadora do golpe? Na verdade simplesmente a aplicação da cartilha neoliberal, já executada outras vezes, como nos governos posteriores à ditadura de 64: Collor, Itamar e FHC. As chamadas “reformas” não passam de um processo de retirada de direitos trabalhistas e previdenciários com o objetivo de transformar o proletariado em precariado, ou seja, destruir o atual mundo do trabalho minimamente regulamentado, onde ainda há possibilidade de algum tipo de segurança e, portanto, de organização. A receita é precarizar o trabalho, de forma a permitir a superexploração da força de trabalho e o aumento da mais-valia. O trabalhador precário não tem possibilidade de se organizar. Vai haver uma supercompetição por trabalho precário. Baixos salários. Nenhum direito trabalhista. Medo e assédio moral por parte das empresas serão regra, não exceção. A miséria atingirá altos níveis e a polícia será chamada para manter a ordem com leis mais duras contra a organização do precariado. Altos lucros para a elite, menos impostos e mais concentração de renda. Um novo tipo de escravo surgirá: aquele que não tem consciência da própria escravidão. A imprensa apresenta as “reformas” previdenciária, trabalhista e tributária como se fossem inevitáveis ou, caso não sejam implementadas a toque de caixa, o país quebrará. A mídia passa a ideia de que se trata de uma questão técnica, científica, que não há como, nem porque, evitar. Esse foi o discurso. Seguindo esse roteiro, o parlamento aprovará as reformas. O judiciário não as considerará inconstitucionais. Já empossado definitivamente, o presidente Michel Temer imediatamente aproximou o Brasil dos EUA, tanto no campo diplomático, quanto no econômico. Em outras palavras passou a executar uma política econômica neoliberal, com redução do tamanho do Estado, privatizações em massa, redução de impostos, etc. Enfim, uma política econômica diametralmente oposta àquela vencedora nas urnas que era neodesenvolvimentista, com participação forte do Estado, geração de empregos de qualidade, maior segurança para o trabalhador e aproximação com os demais países que optaram pelo capitalismo de Estado. Essa mudança radical sem a necessidade de intervenção militar, aparentemente sem quebra do estado de direito, caracteriza plenamente esse novo tipo de golpe: o golpe jurídicoparlamentar-midiático.

CONCLUSÃO

O processo de destituição da Presidenta Dilma Roussef do Poder Executivo, em 2016, pelo Parlamento, com a chancela do Poder Judiciário e a participação ativa da grande mídia, o patrocínio explícito de parcela significativa de nossa elite econômica e menos explícito dos nossos militares e do governo dos EUA; deixou claro, pelo menos para a parcela mais culta e politizada da nossa sociedade e também do exterior, que se tratava de um golpe de estado. Um dos objetivos deste artigo foi, dentro de suas características e limitações, definir o que é um golpe de estado, suas variantes mais contemporâneas, os interesses tanto domésticos quanto estrangeiros que o originaram, os mecanismos utilizados e os atores sociais envolvidos. Observamos que, embora os Poderes Legislativo e Judiciário tenham sido claramente instrumentalizados pela burguesia brasileira e estrangeira para executar o golpe, a mídia teve uma participação fundamental nesse processo. Os grandes meios de comunicação, como vimos a partir dos estudos e reflexões dos autores citados, criaram, desde o início dos governos progressistas, um clima social negativo com o objetivo de apeá-los do poder, primeiro através das eleições, depois à força através do golpe que acabou se concretizando. Mas enquanto o fio condutor das críticas aos governos neodesenvolvimentistas eram as acusações de corrupção, o grande objetivo sempre foi substituir a política econômica adotada, em função da conjunção de interesses internos e externos que expusemos. O fundamento para que o Brasil deixasse de lado o modelo econômico neodesenvolvimentista, com forte participação do Estado na economia e grande fomentador e organizador do desenvolvimento e fosse substituído pelo modelo neoliberal, de Estado mínimo, com função de mero garantidor da livre flutuabilidade de preços e salários; era vendido pela mídia como se fosse técnico. Esse discurso prega que não há possibilidade do Brasil voltar a crescer sem as ditas “reformas tão necessárias ao país”. Reformas previdenciária, tributária, trabalhista e administrativa. Todas elas visam um único objetivo: a destruição dos mecanismos de intervenção do Estado na economia e a implantação radical do modelo econômico neoliberal que, pelos motivos expostos ao longo do texto, irão beneficiar justamente a parcela da elite e os interesses dos EUA, que organizaram e patrocinaram o golpe. Mas o ponto central da nossa análise é: essa mudança radical de modelo econômico é, realmente, uma questão técnica, científica? O instrumento teórico que propomos para a análise é a teoria das revoluções científicas de Kuhn, que sinteticamente explanamos na primeira parte do texto, onde os conceitos de paradigma científico, ciência normal, crise de paradigma e substituição de paradigmas, assim como a importância dos manuais científicos na formação dos cientistas e manutenção dos paradigmas, são elementos essenciais. Na segunda parte, através de vários autores, procuramos demonstrar as possibilidades de aplicação da teoria de Kuhn às Ciências Sociais de modo geral e à Ciência Econômica em particular. Vimos que nessas ciências é possível a coexistência de paradigmas diferentes e concorrentes. Identificamos que atualmente os paradigmas econômicos que coexistem são o novoclássico (ou neoliberal) e a síntese neoclássica-keynesiana (neodesenvolvimentista), ambos capitalistas, portanto. Não por acaso, são justamente os dois modelos em disputa, não apenas por aqui, como em todo o mundo. A partir da filosofia de Kuhn é possível perceber que o que está em jogo aqui e no mundo não é o combate à corrupção, a defesa da democracia ocidental ou a volta do crescimento da economia; é o modelo econômico a ser adotado. A questão é quem ganha e quem perde com cada modelo. Em última análise trata-se de um modelo civilizatório, o projeto de país e de mundo que queremos e que as grandes potências querem para nós. O grande xadrez geopolítico global nos envolve. O Brasil é uma peça importante nesse jogo. O golpe nos reduziu, em poucos meses, de protagonistas, no âmbito dos BRICS, a meros coadjuvantes dentro do campo de controle dos EUA. Há uma grande nuvem de fumaça envolvendo essa questão central e, a nosso ver, a filosofia de Kuhn é importante para dissipá-la. A partir dos autores citados parece claro que a substituição de um modelo econômico por outro representa a substituição de um paradigma por outro e não uma questão técnica ou de má administração. Essa substituição não foi natural, foi provocada de forma inclusive violenta pela nova modalidade de golpe de estado que nos foi infligida: o golpe jurídico-parlamentar-midiático. Vimos que, nos dias de hoje, os cientistas não possuem mais o domínio sobre sua pesquisa. Esse domínio é exercido pelo poder econômico que determina para onde e para quem vão ser encaminhados os recursos para pesquisas. O que deve ser pesquisado e com que objetivo. No modelo econômico de Estado forte, as universidades públicas têm autonomia para aplicar os recursos públicos para pesquisas. Com a destruição do Estado ou a tomada de poder pela elite econômica, essa elite definirá os destinos da ciência e esse destino certamente será o que lhe trará mais lucros, mesmo que isso represente a destruição do meioambiente e a capitulação ante os interesses da grande potência do norte do continente. A burguesia pode determinar qual o paradigma deverá ser escolhido, qual deverá ser esquecido. Para isso ela precisa dominar a Universidade Pública, pois a privada ela já domina. Precisa controlar os manuais, de forma a controlar o paradigma que lhe interessa e destruir o que não interessa. Ainda segundo Kuhn, é nestes momentos de crise de paradigmas que a análise filosófica se torna necessária, fundamental. Este foi o motivo pelo qual abordamos o tema sob este prisma. Evidentemente que a intenção não foi esgotar o tema. Procuramos responder a uma questão específica, mas também, ao mesmo tempo, contribuir com o debate que se coloca como fundamental para o entendimento de tudo o quanto ocorreu neste país ao longo desse processo e possibilitar o surgimento de novas questões. Esta é, em nossa concepção, a função da filosofia.

REFERÊNCIAS

LIVROS:

BUARQUE, Cristóvam. A desordem do progresso: o fim da era dos economistas e a construção do futuro. 2. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 11. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

ARTIGOS:

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CARVALHO, Alba Maria Pinho e GUERRA, Eliana Costa. Brasil nos circuitos do golpe 16: novo ciclo de ajuste e democracia em risco. VIII Jornada Internacional de Políticas Públicas, Universidade Federal do Maranhão, Centro de Ciências Humanas. Ago. 2017. Disponível em: http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2017/pdfs/eixo1/brasilnoscircuitosdogolpe 16novociclodeajusteedemocraciaemrisco
CHOMSKY, Noam. Brazil’s President Dilma Roussef “Impeached by a Gang of Thieves”. Entrevista concedida em May, 2016. Disponível em: https://chomsky.info/05172016-5/
COFECON – Conselho Federal de Economia. Carta aberta aos brasileiros. 2018. Disponível em: https://www.cofecon.gov.br/2018/04/06/carta-aberta-do-cofecon-aosbrasileiros/
EARP, Fábio Sá. Um pouco além de Thomas Kuhn: Da história do pensamento econômico à história da ciência econômica. Revista de Economia Política, vol. 16, nº 1 (61), p. 57-69, jan-mar de 1996. ESQUIVEL, Adolfo Perez. Golpe no Brasil é Parte de um Projeto de Recolonização da América Latina. Entrevista concedida ao site Sul 21, 2016. Disponível em: https://www.sul21.com.br/entrevistas-2/2016/05/golpe-no-brasil-e-parte-de-umprojeto-de-recolonizacao-da-america-latina/
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FIORI, José Luís. O Brasil, os EUA e o “Hemisfério Ocidental” (2).  Sitio da Revista Outras Palavras, 27/02/2014. Disponível em: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/o-brasil-eua-e-o-hemisferio-ocidental-2/
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SANTOS, Boaventura de Sousa. Contra o Golpe Parlamentar no Brasil. Entrevista concedida ao blog da Boi Tempo, 2016. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2016/06/02/boaventura-contra-o-golpe-parlamentarno-brasil/
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THE RETURN OF NEOLIBERAL ECONOMIC POLICIES IN THE CONTEXT OF THE 2016 LEGAL-LEGISLATIVE-MEDIA COUP: TECHNICAL NECESSITY OR PARADIGM SHOCK? JOÃO GILBERTO PARRAS BENITEZ 2

ABSTRACT:
During the 2016 impeachment process of President Dilma Roussef, independent media and a large portion of Brazilian and foreign intellectuals denounced the maneuver as a coup d’état executed by Parliament, with the support of the mainstream media and the Judiciary, in order to further the interests of the national bourgeoisie in accordance with the US’s geopolitical project. Michel Temer took power and immediately put into practice the neoliberal economic project which had been defeated at the polls. Using the pretext of an unavoidable technical necessity, it replaced the neo-developmental economic model, with strong state presence, which had characterized the previous left-wing governments. The purpose of this article is to reflect critically on this radical change in economic policy from the perspective of Thomas S. Kuhn’s thinking. Our hypothesis is that this was not a technical necessity, as the mass media tried to make us believe in the coup, but rather a clash between two paradigms of economic science, in which one was chosen by the nation in free elections and the other was imposed through of the coup.
KEY WORDS:
Philosophy ; Philosophy of Science ; Thomas S. Kuhn ; Paradigms ; Economic Paradigms ; Coup d’etat ; Media-judicial coup.




2 Economista, pós-graduado em Economia, Administração de Empresas e Filosofia

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Educação, de forma genérica, pode ser entendida como o ato de transmitir às novas gerações um determinado conjunto de valores e conhecimentos. Essa atividade educativa assume, em cada época e lugar, formas distintas. Podemos falar, assim, em diferentes pedagogias. Para compreendê-las há que se interpretá-las no seu contexto histórico e à luz dos valores e ideias que as fundamentam. Dessa maneira, na antiguidade, a pedagogia conhecida e utilizada pelos povos hindus, persas, chineses e egípcios era tradicionalista e consistia na transmissão de uma doutrina sagrada, cujo objetivo era orientar o jovem na busca da felicidade e da virtude. Na Grécia antiga, a educação como transmissão da cultura, da história e da religião era baseada na perspectiva mítica, sendo difundida através dos poemas de Homero (A Odisseia e A Ilíada). A passagem do mito à razão, através da reflexão filosófica, deu-se com os pensadores pré-socráticos e levou ao surgimento da primeira instituição de ensino com caracter

O Jardineiro Fiel: uma breve análise do filme à luz do imperativo categórico de Kant.

A primeira cena do filme mostra o assassinato brutal, ocorrido no interior do Quênia, de Tessa, uma ativista política casada com Justin, um diplomata inglês de segundo escalão e jardineiro por hobby. Inconformado com a morte da mulher e com a inércia das autoridades locais e de seu próprio consulado, Justin passa a investigar as circunstâncias em que ocorreu o assassinato. A ativista suspeitava de uma trama macabra envolvendo uma indústria farmacêutica europeia, além de autoridades do Quênia e do próprio governo inglês. Justin, a partir de arquivos de computador e documentos encontrados entre os objetos deixados por Tessa, descobre que quenianos miseráveis estavam, sem seu conhecimento e consentimento, sendo usados como cobaias em experimentos com um novo fármaco. Muitas dessas pobres pessoas morriam após ingerirem o medicamento. As autoridades locais e a empresa dificultavam o acesso ao local e aos parentes das vítimas. A empresa privada e os governos envolvidos tinham interesse no d

O processo de Gentrificação: O caso da construção do Estádio Arena Corinthians (Itaquera – São Paulo – SP)

Introdução            O presente trabalho pretende conceituar o fenômeno urbano conhecido como gentrificação, assim como apresentar um breve estudo bibliográfico de caso, partindo de trabalhos acadêmicos e artigos especializados sobre o tema. Escolhemos, para isso, as transformações ocorridas no bairro paulistano de Itaquera no processo de concepção e construção do Estádio Arena Corinthians, apelidado à época da construção de “Itaquerão”, onde ocorreu a abertura da Copa do Mundo FIFA de 2014 e vários jogos daquela competição. Conceito de Gentrificação             O termo gentrificação é derivado do inglês gentrification, que, em inglês pode ser traduzido como: “bem-nascido”. O termo foi utilizado pela primeira vez em 1963, pela socióloga britânica Ruth Glass, em um artigo cujo tema eram as mudanças urbanas na cidade de Londres (Inglaterra). Ela criou o termo para se referir ao “aburguesamento” do centro da capital inglesa como consequência da ocupação, pela classe média e alta l