Em tempos de governos autoritários e
regimes políticos de exceção, os quais não são novidade em terras Tupiniquins,
arte e artistas, sempre foram elementos de resistência, verdadeiras fortalezas
contra o arbítrio dos usurpadores do poder. Procuraremos, a partir de textos de
dois filósofos brasileiros: Benedito Nunes (1989, p. 90-98) e Marcelo Mari
(2012, p. 423-431), refletir sobre a relação entre arte e política no Brasil
dos anos ‘60 e ’70, período inserido, portanto, na fase mais violenta do Golpe
Militar de 1964. Evidentemente tais reflexões poderão ser aplicadas em outros
contextos sociais e recortes históricos.
Benedito Nunes, a partir das teorias do
historiador e filósofo positivista francês Hyppolite Taine e do filósofo alemão
Karl Marx, analisa a influência do meio físico e social sobre a produção
artística.
Para Taine, “o meio físico determina a
diversidade racial, as diferenças de raça determinam certos traços físicos e
psíquicos que refletem nos sentimentos dos indivíduos e no caráter das
instituições” (apud MARI, 2012, p. 90). Novas formas artísticas vão surgindo à
medida que, por circunstâncias históricas, altera-se o ambiente. A partir do
pensamento de Hyppolite, Nunes conclui acerca da influência do meio social na
produção artística:
”Em
cada momento da evolução social as mudanças profundas que se operam nos
costumes, nas instituições, no modo de agir e de pensar e no próprio caráter
dos homens, refletem-se invariavelmente no alcance e no conteúdo da expressão
artística”. (NUNES, 1989. p. 91)
Karl Marx aborda a questão da influência
do meio físico e social sobre a arte a partir do método do materialismo
histórico ou marxismo. A partir do princípio básico do marxismo que divide a
sociedade em dois níveis: a infraestrutura e a superestrutura, onde a
infraestrutura corresponde ao conjunto das relações de produção, ou seja, das
relações de classe (proletários e capitalistas ou proprietários dos bens de
produção) estabelecidas em dada sociedade. A infraestrutura, no pensamento de
Marx, seria a base da sociedade sobre a qual se ergueriam todas as demais
instituições. A superestrutura corresponderia às instituições e atividades
sociais que surgem a partir das relações de produção de valor. A superestrutura
abarcaria, assim, as diversas formas de vida social como: a religião, o direito,
a filosofia, a política e, entre outras, a própria arte. Uma vez fazendo parte
da superestrutura da sociedade, a arte seria derivada da atividade social, que
por sua vez é fundamentada nas relações de classe na infraestrutura. (NUNES,
1989, p. 92-94.) Dessa forma, Nunes, citando o teórico marxista Georges V.
Plekhanov, nos mostra que:
”...]as impressões estéticas que
dependem das ideias determinadas pelas condições da vida social, isto é, pelas
bases econômicas da sociedade, não existem em estado puro. Elas mudam se essas
condições se alteram, alterando o gosto e o conteúdo das manifestações
artísticas.[...]São fatores sociais que determinam o mecanismo do gosto. As
relações de produção constituem, em última análise, fator decisivo – coisa que,
segundo o autor, é fácil de comprovar na arte primitiva, que refletiria
claramente a totalidade das relações de produção. (NUNES, 1989. p. 93-94)
Em Marx, portanto, há uma correlação
entre as relações de classe dentro do processo produtivo de uma sociedade, em
dado recorte histórico e social, e as manifestações artísticas, em suas
diversas formas, nessa mesma sociedade. Em geral, no pensamento marxista, as
ideias dominantes dentro de uma sociedade são as ideias da classe dominante. Em
momentos históricos em que a classe dominante e a ordem social por ela
instituída não mais estão em consonância com os ideais dos artistas, mas que
estes não concebem, ainda, uma nova ordem alternativa, surge um comportamento
que parece ser padrão nessas situações: os artistas refugiam-se na própria
arte. Na técnica artística, como um fim em si mesmo. Nunes exemplifica essa
situação em vários momentos históricos:
”Foi essa a atitude dos românticos, dos
parnasianos e dos simbolistas, que cultuaram a Beleza, pregando a santidade da
poesia, refúgio dos incompreendidos e dos revoltados. Recusavam-se ao contato
com a vida social, porque nem a aceitavam tal como era, e nem pretendiam
transformá-la. (NUNES, 1989. p. 95)
Surge então, a partir desse ponto de
vista, uma questão: como explicar as grandes obras de arte que são
reconhecidas, ao longo dos séculos, como clássicas? Reconhecidamente de
qualidade ao longo do tempo. Para Nunes, esse fato é resultado de que essas
obras satisfazem, “conforme as condições sociais e intelectuais predominantes
num dado povo, os anseios de libertação e de aperfeiçoamento da maioria dos
homens”. (NUNES, 1989, p. 95)
Os anseios ideológicos do artista, em
dado momento histórico, são a fonte de inspiração de temas e ideias
fundamentais para a criação artística. Em momentos de crise e intensificação
dos embates de classe, surge a figura da arte militante, ligada a objetivos
políticos específicos. Mas as concepções artísticas não se limitam ao
posicionamento político do artista, existem outros fatores que as influenciam;
caso contrário bastaria identificar a qual classe social estaria o artista
vinculado para identifica-lo a este ou aquele posicionamento político. Nem
sempre é o caso, embora algumas vezes ou em algumas épocas o seja. As relações
entre meio social e artista não se limitam às influências do meio físico ou
apenas à classe social a que pertence o artista, mas não podemos ignorar esses
poderosos elementos.
Nunes encerra o capítulo onze de sua
obra assim:
”O artista não somente cristaliza na sua
criação uma dada realidade social, mas responde ativamente às solicitações de
seu meio, às exigências de sua classe, aos problemas morais, sociais e
políticos de sua época. Sua resposta importa num desvendamento ou numa
contestação, numa descoberta ou numa recusa, sem excluir-se a própria aceitação
daquilo que existe, e que, no entanto, recebe, na obra autenticamente
artística, uma expressão reveladora e ampla dirigida a todas as consciências”.
(NUNES, 1989. p. 98)
Marcelo Mari, em seu ensaio, aborda a
crise da arte de vanguarda entre os anos ‘1960 e ’1970, no período mais duro da
Ditadura, a partir do ensaio “A crise da vanguarda no Brasil”, de autoria do
crítico de arte Frederico Morais. Esse artigo, nas palavras de Mari: “fazia um
balanço sobre as principais iniciativas produzidas na arte brasileira dos anos
de abertura democrática do Estado Novo até os anos iniciais e fatídicos após o
Ato Institucional número 5”. (MARI, 2012, p. 423)
Arte de vanguarda, para Morais, nas palavras
de Mari: “atualização permanente, isto é, fazia sentido falar ainda em arte de
vanguarda no Brasil devido ao caráter transgressivo de suas propostas e ao
entendimento de que a arte que se produzia naquele momento estava à frente das
questões éticas de seu tempo”. (MARI, 2012, p. 423) Ao final dos anos ’60 e
início dos ’70 decretou-se o fim do conceito de vanguarda ligado à questão
formal, característica dos movimentos de vanguarda da primeira metade do século
XX. Para Morais, a partir desse momento histórico de exceção e violência, arte
de vanguarda passa a ser: “... arte como ação e engajamento. O artista de
vanguarda não se restringe a produzir obras. Ele luta para impor suas ideias,
que não se esgotam, evidentemente, no campo estético”. (MARI, 2012, p.
424)
Morais atribuiu, em seu ensaio, a crise
da vanguarda brasileira, entre outros motivos: “...à falta cada vez mais
generalizada de liberdade para a produção artística e à desestruturação do
sistema das artes plásticas no Brasil (exílio da crítica, perseguição dos
artistas, descrédito nas novas ocupações das instituições e dos museus, etc) em
detrimento do incentivo das atividades ligadas ao principiante mercado de arte
local”. (MARI, 2012, p. 424) A arte de vanguarda, no Brasil, durante a Ditadura
Militar de 1964, entrou em crise, portanto, muito em função da repressão aos
artistas e críticos de arte descontentes com o regime antidemocrático imposto à
força. A morte de alguns, o exílio de muitos e a mordaça imposta a todos foi o
principal motivo da crise da vanguarda neste país.
Enquanto os artistas resistentes ao
sistema eram calados, mortos ou exilados, outros artistas, por medo ou senso de
oportunidade, aderiram ao sistema e foram beneficiados. Nas palavras de Mari:
”Do fim das vanguardas construtivas às
manifestações de arte conceitual, a crítica brasileira foi exilada de seu papel
primordial na interpretação da arte e de sua significação social; os que
sobreviveram e persistiram no ambiente cada vez mais mortalmente grosseiro e
opressivo, sob o comando militar, tiveram de se adequar à diplomacia das meias
palavras e ao empenho involuntário e canhestro, com vantagens particulares ou
não, de subordinação à nova ordem estabelecida. De toda sorte, a verve
combativa da crítica politizada dos anos de 1960 é substituída progressivamente
por outra às vezes mais impotente e servil, às vezes, pactuada com a ordem
estabelecida no que concerne aos apaziguamentos políticos ou institucionais e
que termina por fazer concessões tanto por sobrevivência como para manutenção
da produção e das instituições artísticas no Brasil”. (MARI, 2012. p. 426)
Como se depreende do texto de Mari,
pouco a pouco a vanguarda artística resistente ao sistema foi calada ou
eliminada, inclusive fisicamente, e substituída por artistas subservientes, por
um motivo ou outro. Com o tempo e a chegada ao Brasil da Pop Art, a arte
brasileira passou a ser assimilada pelo mercado, onde tudo se compra e tudo se
vende. A arte como todo o resto passa a ser mera mercadoria. Esse tipo de arte
popular não engajada e voltada para mercado, com ênfase na forma e em
detrimento do conteúdo, passou a ser usada na propaganda e incorporada ao
ideário do Regime. Vejamos como Mari se
refere a esse fenômeno:
”O termo vanguarda passou a ser usado
nos fins de 1960 e início de 1970 como referência direta ao experimentalismo da
arte brasileira em oposição à tradição nacional-popular representada pela arte
política ou engajada que dando ênfase ao conteúdo em detrimento da forma, na
suposição mecânica desses termos, fazia do didatismo artístico uma tentativa de
aproximação com as massas em busca da valorização do elemento nacional inscrito
nas diversas manifestações da cultura popular brasileira. Esses elementos de
afirmação dos valores da cultura popular brasileira seriam posteriormente
aclimatados e incorporados pela propaganda e pelo discurso ideológico da
Ditadura Militar”. (MARI, 2012. p. 428)
Hoje sabemos que, em diversas áreas da
arte, nas artes plásticas, no teatro, cinema e especialmente na música, a
produção engajada da arte de vanguarda daqueles tempos de repressão produziu um
acervo de obras de inegável importância.
O que veio em seguida foi a adesão cega à lógica de mercado, sob o
patrocínio do Regime, que produziu e continua produzindo ainda hoje, a olhos
vistos, obras de baixa qualidade, mas que são facilmente produzidas,
comercializadas e consumidas, gerando lucros elevados à nascente indústria
cultural brasileira, pouca ou nenhuma motivação para reflexão aos seus
consumidores e, principalmente, poucos problemas aos governantes de plantão.
Analisando ambos os textos de
referência, observamos que Benedito Nunes, fundamentado no pensamento de Taine
e Marx, traz à tona conceitos importantes para um melhor entendimento e
reflexão acerca da questão da crise da Vanguarda no Brasil durante o Regime
Militar iniciado em 1964.
Nunes pinça no pensamento de Taine, em
síntese, que o meio social se altera em função das circunstâncias históricas e,
da mesma forma, alteram-se as formas pelas quais os artistas manifestam-se
artisticamente. O artista afetado pelo meio em que vive reflete tais alterações
em sua expressão artística. Podemos perceber claramente a ocorrência de tais
mudanças tanto do meio social quanto das formas de expressão no artigo de Mari,
quando este narra tanto a reação dos artistas por meio de sua arte à violência
imposta às instituições nacionais pelo Golpe de 64, quanto na contrarreação do
Regime contra os artistas que se opuseram a ele. Reação esta extremamente violenta, levando
vários desses artistas, críticos e intelectuais à morte, à tortura, ao exílio
ou ao silêncio forçado. O Regime, em seguida, passa a patrocinar um tipo
popular de arte, não engajada, não reflexiva, inofensiva, portanto, e voltada
ao mercado.
Já, a partir do pensamento de Marx, tal
qual exposto por Nunes, no texto citado, podemos analisar o fenômeno abordado
por Mari sob outro ponto de vista. A partir de uma análise
histórico-materialista, temos que as alterações nas instituições que compõe a
superestrutura da sociedade da qual faz parte a arte, decorrem, necessariamente,
de alterações na infraestrutura, isto é, nas relações de produção. Em outras
palavras, nas relações de classe. Dessa forma, as alterações sociais que
levaram às manifestações artísticas de engajamento político dos artistas
durante o Regime Militar de 64, foram o recrudescimento da perseguição aos
“inimigos do sistema” principalmente após a publicação do AI-5, que deu início
à fase mais violenta da repressão. Se aparentemente as relações de produção ou
de classe não tiveram influência direta sobre o comportamento dos artistas e
reflexo sobre a produção artística da época, isso apenas mostra como a análise
de cunho marxista pode ser útil. Isto porque o próprio Golpe Militar e seus
desdobramentos tinham por objetivo real mudanças no sistema produtivo. O Golpe
deve ser visto sob uma perspectiva global, da Guerra Fria, entre as
superpotências da época, que então se encontrava em seu momento mais explosivo,
com a crise dos mísseis de Cuba e a Operação Condor que englobava vários países
da América do Sul, que foram dominados por ditaduras militares muito parecidas
com a nossa. Claro que nada disso ocorreu ao acaso sem a participação da outra
Superpotência, os EUA. Foi a aproximação do Governo João Goulart, deposto pelos
militares, em relação aos países que apoiavam a extinta União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas – URSS - que levou ao Golpe, onde os militares apoiados
pela classe capitalista brasileira e estadunidense em detrimento da classe
operária tomaram o poder. Todo o desdobramento dessa situação que se originou
no sistema produtivo, não só brasileiro, como mundial, levou, de acordo com a
teoria marxista exposta por Nunes, às alterações político-sociais expostas por
Mari e que, por sua vez, teve influência nas formas de expressão artística da
época.
Após relacionar fragmentos dos textos de
Nunes e Mari, pudemos exemplificar com uma situação real delimitada no tempo e
no espaço: a crise da vanguarda no Brasil nos anos ‘1960 – ‘1970, elementos do
pensamento de Hippolyte Taine e Karl Marx. Ao mesmo tempo, a partir do
pensamento desses filósofos, extraído do livro de Nunes (1989, p. 90-98), foi
possível interpretar sob um novo prisma os acontecimentos abordados por Mari
(2012, p. 423-431), a partir do ensaio “A crise da vanguarda no Brasil de
Frederico Morais”. Mais do que refletir sobre a produção artística durante os
anos de Ditadura Militar, este exercício nos faz refletir sobre o momento atual
em que vivemos. Momento, infelizmente, em muito parecido com aqueles momentos
trágicos da nossa história, onde a expressão artística muitas vezes precisava
utilizar estratagemas para confundir a censura que lhe era imposta. O meio
social e os acontecimentos políticos induziram ao surgimento de uma arte
engajada e com características específicas para o momento, que, como vimos,
podia ser em parte explicada pela filosofia do século XIX, de Marx e Taine.
Esse mesmo meio gerou outro tipo de arte, meramente comercial, descartável, de
baixa qualidade técnica, não engajada e servil ao sistema. Essa mesma filosofia
poderia iluminar o nosso momento presente, como iluminou o nosso passado? Fica
a questão para nossa reflexão, pois a principal função da filosofia não é
trazer respostas, mas questionar.
Referências:
MARI, Marcelo. Frederico
Morais e a crise da vanguarda no Brasil (1960-70). Artigo VIII EHA –
Encontro de História da Arte, 2012, p.423-431. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/eha/atas/2012/Marcelo%20Mari.pdf
MEIRELES, Cildo. Quem matou Herzog? Carimbo sobre cédula de papel moeda. Movimento
neoconcretista. ‘1970-‘1975. Disponível em: http://memoriasdaditadura.org.br/obras/insercoes-em-circuitos-ideologicos-projeto-cedula-1975-de-cildo-meireles/index.html
NUNES, Benedito.
Introdução à filosofia da arte. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1989, p. 90-98.
PORTINARI, Candido. Os retirantes. Óleo sobre tela. 190cm x 180cm. Movimento
Modernista. MASP, São Paulo. 1944. Disponível em: https://www.culturagenial.com/quadro-retirantes-de-candido-portinari/
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