No livro II da
República de Platão, temos o diálogo entre Sócrates, Glauco e seu irmão
Adimanto, onde, com o objetivo de investigar a natureza da justiça, Sócrates propõe
a criação de uma cidade (Estado) imaginária. Essa cidade deve ser formada
inicialmente com a finalidade de atender às necessidades básicas de seus
cidadãos, por um lavrador (alimentação), um pedreiro (habitação), um tecelão,
um sapateiro (vestuário) e outro artífice que se ocupe do que é relativo ao
corpo, um médico. (MARQUES, 2012, p.94/95). Com o crescimento da cidade surgem
novas necessidades, desta vez de artigos de luxo e cultura. O comércio
intensifica-se e a guerra se torna uma possibilidade, tendo em vista a
necessidade da expansão de suas terras ou a sua defesa contra os vizinhos. Há
que se preparar uma nova classe de cidadãos encarregados da defesa e da
administração da cidade, a qual Sócrates chama de classe dos guardiões. Os
guardiões devem, assim como os demais artífices, se dedicar exclusivamente ao
seu ofício, de forma a garantir a excelência em suas atividades. Precisam,
contudo, de educação adequada à função. Esta pequena dissertação objetiva
esclarecer, de forma sintética, as qualidades que os guardiões da pólis devem
ter e o papel da música, inclusa nessa categoria a literatura, na sua formação.
Na cidade cada qual
deverá executar uma única arte (ofício), aquela para a qual nasce. Devendo
exercitá-la por toda a vida. O mesmo ocorre com os guardiões. Dessa forma,
deve-se selecionar aqueles que possuem as qualidades e a natureza adequadas
para a defesa da cidade. (PLATÃO, A
república, II, 374a-e). E quais seriam essas qualidades? Sócrates, então,
se utiliza de uma imagem para isso. A
imagem dos cães de boa raça. Tais cães são, por natureza, fogosos, rápidos e
dóceis com as pessoas que conhecem e ferozes com os estranhos. Sócrates, no
diálogo, constrói “uma analogia, uma imagem intelectual, que orientará a
investigação, procurando encaminhar o discurso à definição”. (SILVA, 2009,
P.126-127 apud MARQUES, 2012, p.96). Assim, os guardiões não deverão ser selvagens
entre sí nem com os seus concidadãos, apenas com o inimigo. No próprio texto da
República temos isso claro na seguinte passagem:
“Contudo, é, sem dúvida,
necessário que eles sejam brandos para os compatriotas, embora acerbos para os
inimigos; caso contrário, não terão de esperar que outros os destruam, mas eles
mesmos se anteciparão a fazê-lo”. . (PLATÃO, A República, II, 375a-e).
O guardião, que
Sócrates caracteriza, ora como guerreiro, ora como administrador e outras vezes
como os dois, deverá, portanto, ter qualidades para ser perspicaz para
descobrir o inimigo, rápido na perseguição, forte e valente. Lobo com os
inimigos e dócil com os compatriotas. Mas, ainda utilizando a analogia com o
cão de raça: como os cães identificam os desconhecidos bons dos maus?
Conhecendo as pessoas. No caso dos guardiões, há a necessidade que tenham uma
natureza amiga do saber, ou, em outras palavras, sejam filósofos. Isso fica
claro nas palavras de Sócrates, no diálogo:
“Por conseguinte, será por natureza filósofo, fogoso, rápido e forte
quem quiser ser um perfeito guardião da nossa cidade”. (PLATÃO, A república, II, 376a-e).
A partir da
identificação da necessidade de educar a classe dos guardiões, emerge outro
problema a ser investigado: o que ensinar aos guardiões? A resposta para a
questão não tarda: “Que educação há de ser? Será difícil achar uma que seja
melhor do que a encontrada ao longo dos anos, a ginástica para o corpo e a
música para a alma” (PLATÃO, A república,
II, 376a-e). Sócrates inclui na categoria música também a literatura, mas
identifica duas espécies de literatura: a verdadeira e a falsa. A falsa é uma
fábula que é mentira enquanto contém algumas verdades. Devem ser ensinadas,
primeiro às crianças antes de serem enviadas aos ginásios. Nem todas as fábulas
devem, no entanto, ser contadas. Propõe, assim, uma censura às fábulas, uma
escolha das que devem e das que não devem ser contadas às crianças. Assim,
temos:
“- Logo, devemos
começar por vigiar os autores de fábulas, e selecionar as que forem boas e
proscrever as más. As que forem escolhidas, persuadiremos as amas e as mães a
contá-las às crianças, e a moldar as suas almas por meio das fábulas, com muito
mais cuidado do que os corpos com as mãos. Das que agora se contam, a maioria
deve rejeitar-se”. ” (PLATÃO, A
república, II, 377a-e).
A razão para a censura é que as crianças,
nesta fase, estão na idade em que seu caráter é moldado. Dessa forma não se
deveria permitir que essas fábulas transmitissem, aos pequenos, opiniões
contrárias àquelas que deverão cultivar quando crescerem. Sócrates classifica
as obras de Hesíodo e Homero de fábulas falsas, mentiras sem nobreza. Isto
porque contam histórias em que deuses e heróis possuem falhas e fraquezas
humanas. Falhas que os guardiões não podem ter “Afinal, se os deuses e heróis
têm fraquezas, também podemos tê-las. Isto é natural!” (MARQUES, 2012,
p.98-99). Os poemas de Homero e Hesíodo
contam histórias em que deuses se odeiam, conspiram e combatem entre si.
Inimizades e traições entre familiares, enfim, deuses cometendo toda a espécie
de maldades e vilanias. Para Sócrates, Deus é essencialmente bom e não engana
as pessoas. Deve-se retratá-lo dessa forma. Vejamos no texto da República:
"Por conseguinte,
Deus é absolutamente simples e verdadeiro em palavras e actos, e nem ele se
altera nem ilude os outros, por meio de aparições, falas ou envios de sinais,
quando se está acordado ou em sonhos". (PLATÂO, A república, II, 382e).
Embora sejam alegorias, as crianças não
conseguem diferenciar o que é alegórico do que é verdadeiro. Devem, assim,
ouvir histórias que sejam compostas com maior nobreza e orientadas no sentido
da virtude (PLATÃO, A república, II,
378-e). Sócrates recomenda que: “...]se deve escrever em prosa e em verso
acerca dos deuses, como não sendo feiticeiros que mudam de forma nem seres que
nos iludem com mentiras em palavras e atos” (PLATÃO, A república, II, 376a-e).
Completamos, assim,
esta sintética análise acerca das qualidades esperadas dos guardiões da pólis e
também da função da literatura no processo de educação, ressaltando a questão
da proposta de censura dos poemas Homéricos, que até então eram utilizados na
transmissão da cultura grega de geração a geração, e a sua substituição por
outros que retratassem, com maior nobreza, os deuses e pudessem ser utilizados
para transmitir valores mais elevados às novas gerações de guardiões.
Referências
bibliográficas
MARQUES, Carlos Euclides. Discurso filosófico I – Livro didático. Palhoça: UnisulVirtual,
2012.
PLATÃO. A
república. Trad. Pietro Nassetti. 3ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2014
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