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Francis Bacon e a ciência como instrumento de tortura da natureza: críticas contemporâneas.

O objetivo do presente texto é, dentro de seus reduzidos limites, apresentar, de forma sintética, algumas críticas de autores contemporâneos ao modelo de ciência proposto por Francis Bacon em sua obra “Novum Organum”.
O filósofo inglês Francis Bacon, juntamente com René Descartes, são, comumente, apontados como os fundadores de uma nova forma de refletir sobre os problemas teóricos mais fundamentais, dando início à filosofia moderna. (MARQUES e SELL, 2015, p. 10). Aqui vamos nos fixar, no entanto, apenas no pensamento de Bacon. Sua obra Novum Organum é parte de uma obra maior (inacabada), o Instauratio Magna, que é um ambicioso projeto de reforma do conhecimento humano e foi escrita em forma de aforismos. A partir de uma concepção pragmática da ciência, seu trabalho estava direcionado a substituir as antecipações do intelecto pelas interpretações da natureza. Para Bacon, a ciência antiga e a tradição escolástica, em especial, não traziam resultados práticos. Era necessário desenvolver um novo método científico baseado na indução e na experimentação, como forma de obter resultados práticos e melhorar a vida do homem. (MARQUES e SELL, 2015, p. 22-24). A obra é iniciada com a discussão sobre o poder do homem frente a natureza e a possibilidade de aumento desse poder por meio do uso de instrumentos. Já na introdução da obra lemos: “Mas aqueles dentre os mortais... que estejam preocupados, não com a vitória sobre os adversários por meio de argumentos, mas na vitória sobre a natureza, pela ação”. (BACON, 2015, p.72). Era o ideal de Bacon, a chamada razão instrumental, que nas palavras de Chauí (2015, p. 297) : “nasce quando o sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer é dominar e controlar a natureza e os seres humanos”. Ainda hoje a ciência continua baseada na razão instrumental, utilizando a tecnologia para dominar a natureza e os seres que a habitam. Muitas críticas surgiram.
Para Capra, “a partir de Bacon, o objetivo da ciência passou a ser aquele conhecimento que pode ser usado para dominar e controlar a natureza e, hoje, ciência e tecnologia buscam, sobretudo, fins profundamente antiecológicos”.  (CAPRA, 2001, p.51). Para Chauí, “o filósofo Francis Bacon, no início do século XVII, criou uma expressão para referir-se ao objeto do conhecimento científico: ‘a natureza atormentada”. (CHAUÍ, 2015, p.297). Essa expressão refere-se à metodologia proposta por Bacon, de fazer a natureza reagir a condições artificiais criadas pelo homem com objetivos experimentais, ou seja, atormentar, torturar a natureza para fazê-la falar e expor-se ao conhecimento humano.          Ainda sobre o tema, prosseguimos com Chauí:
“O tormento da realidade aumenta com a ciência contemporânea, uma vez que esta não se contenta em conhecer as coisas e os seres humanos, mas os constrói artificialmente e aplica os resultados dessa construção ao mundo físico, biológico e humano (psíquico, social, político, histórico). Assim, por exemplo, a organização do processo de trabalho nas indústrias apresenta-se como científica porque é baseada em conceitos da psicologia, da sociologia (controle sobre o espírito dos trabalhadores), a fim de que a produtividade seja a maior possível para render lucros ao capital. Na medida em que a razão se torna instrumental, a ciência vai deixando de ser uma forma de acesso aos conhecimentos verdadeiros para tornar-se um instrumento de dominação, poder e exploração”. (CHAUÍ, 2015, p.297).  

Observamos, portanto, que, para Chauí, a ciência passa a ser um instrumento de dominação de classe atendendo aos interesses dos poderosos e passando a fazer parte das forças produtivas de uma sociedade. Governos e empresas financiam pesquisas científicas com objetivos políticos ou econômicos e determinam, em última instância, o que os cientistas irão pesquisar. Quem irá pesquisar, para quem e para quê. Não há neutralidade e liberdade para os cientistas. Esse quadro foi objeto de análise filosófica através do filme “O PONTO DE MUTAÇÃO” (1990), que conta a história do encontro de um político, um poeta e uma cientista, numa vila medieval na França. Aos 36 minutos do filme, os personagens adentram a uma sala de tortura da Idade Média e encontram o cenário ideal para refletirem sobre a razão instrumental de Bacon, em que a natureza devia ser torturada, escravizada até revelar os seus segredos. O homem, em sua sede de poder e de posse de ferramentas mecanicistas, acabou envenenando o planeta, destruindo florestas, matando peixes e provocando chuvas ácidas. O homem perdeu o controle da situação e se tornou a principal vítima. A própria personagem-cientista conta como teve seu trabalho, que inicialmente visava contribuir para a cura do câncer, ser pervertido e utilizado para desenvolver armas do projeto “Guerra nas Estrelas” do governo estadunidense.
Importante salientar que tais críticas foram feitas em forma de comentários, uma vez que, nas palavras de FOLSCHEID e WUNENBURGER (2002, p.49): “não se limitam a expor o que um autor realmente disse num texto preciso, mas de estabelecer um diálogo com ele...”.
As críticas apontadas em relação à forma atual da metodologia científica formulada por Bacon são bastante pertinentes, uma vez que mostram exemplos visíveis de como as decisões da ciência estão nas mãos de governos e de grandes conglomerados financeiros que objetivam apenas o lucro e a manutenção do poder, enquanto o planeta e os seus pobres habitantes sofrem os efeitos desse processo, em forma de doenças, fome, efeito estufa, aumento dos níveis dos oceanos, etc.

Referências bibliográficas:
BACON, Francis. Novo Organum. Palhoça: UnisulVirtual, 2015.
CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. 22ª ed. São Paulo: Cutrix, 2001.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 14ª ed. São Paulo: Atica, 2015.
FOLSCHEID, Dominique; WUNENBURGER, Jean-Jacques. Metodologia Filosófica. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MARQUES, Carlos Euclides; SELL, Sérgio. Textos Filosóficos Modernos e Contemporâneos – Livro didático. Palhoça: UnisulVirtual, 2015.

O PONTO DE MUTAÇÃO (o filme). Título Original: Mindwalk.  Direção: Bernt Amadeus Capra. Distribuição: Cannes Home Video. Elenco: Liv Ullmann, Saw Waterston e John Heard. EUA.  Ano de produção: 1990.

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