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Homens-máquina ou máquinas humanas? Eis a questão.

O presente texto objetiva refletir sobre questões tais como o ser, a liberdade, a finitude do ser humano e o preconceito a partir de duas obras cinematográficas: “Blade runner” (EUA, 1982) e “O homem bicentenário” (EUA, 1999). Os personagens centrais de ambos os filmes futuristas são robôs humanoides de alta tecnologia que desenvolvem, de forma inesperada, sentimentos e individualidade existencial. Adquirem, com isso, subjetividade humana que os leva a resistir a seu destino previamente programado. Partindo desse contexto, a reflexão se dará tomando por base teórica o pensamento dos filósofos Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre.
O filme “O homem bicentenário” mostra a saga do robô Andrew, adquirido por uma típica família de classe média estadunidense do século XXI, como ferramenta de alta tecnologia para realizar serviços domésticos. Andrew foi, aos poucos, acolhido pela família como um de seus membros. Desenvolve-se entre ele e a família relações afetivas não previstas em sua programação. Em sua longa vida de cerca de duzentos anos, o robô, a princípio imortal, passa por uma série de etapas evolutivas, onde busca, tanto sob o aspecto físico como subjetivo tornar-se um humano. Apaixona-se pela filha mais nova do casal, a quem chamava carinhosamente de menininha, que falece sem que sua paixão se consumasse. Depois se apaixona também pela neta de menininha, com a qual, após inúmeras atualizações técnicas em seu corpo, casa-se informalmente, pois não é reconhecido como humano. Não podendo suportar perder “novamente” sua amada, em função da finitude da vida humana, Andrew completa sua atualização tecnológica tornando-se um ciborg orgânico e mortal. Por fim, depois de longa batalha judicial é reconhecido como humano. Tarde demais, porque, pouco antes de sua vitória judicial, morre juntamente com sua amada.
“Blade runner” se passa em Los Angeles do início do século XXI e conta a história de robôs mais fortes e ágeis que os humanos e com inteligência equiparável a estes. Foram criados por uma grande corporação para serem utilizados como escravos na colonização de outros planetas e foram batizados de replicantes. Para evitar que adquirissem personalidade própria e evoluíssem em todos os sentidos, tiveram sua vida útil reduzida para apenas quatro anos e receberam uma falsa memória, para que não tivessem plena consciência de sua condição não humana. Mesmo assim, alguns se rebelaram e retornaram a Terra. Policiais, denominados blade runners, foram encarregados de caçá-los. O filme conta a história de um blade runner e quatro replicantes por ele caçados. O objetivo dos replicantes era encontrar seu criador para que pudessem alterar sua constituição orgânico-mecânica e ter mais tempo de vida a fim de que pudessem ter condições de se desenvolver ainda mais. Leia-se: se humanizar. Já o blade runner precisa eliminá-los. Durante a perseguição, o caçador de andróides apaixona-se por uma replicante, funcionária da corporação que a criou. Note-se que a replicante não conhecia a sua condição, pensava ser humana. Por fim, o último replicante rebelado encontra o seu criador e, depois de saber que não poderá ter sua vida prorrogada por questões técnicas, o mata. Morre em seguida, após salvar a vida do blade runner que o perseguia. A replicante sobrevivente, já ciente de sua condição de androide, foge com o seu amado blade runner, na última cena do filme.
Apesar do caráter aparentemente comercial e de entretenimento dos filmes em questão, ambos apresentam diversos e interessantes temas que podem ser analisados sob a ótica filosófica. A primeira delas é a própria questão do ser. Acerca do ser temos, nas palavras de Heidegger (2017, p.116), que:

O homem é um ser-no-mundo, um ser–aí (Dasein), afirma Heidegger! O homem é um ser que se projeta para fora de si, mas sem sair das fronteiras do mundo emque está submerso; projeta-se no tempo e sempre em direção ao futuro, já que ambos, em unidade, transformam-se. No entanto, quando o homem mergulha nas preocupações cotidianas e se deixa enredar pelos hábitos comuns, quando se volta para fora, para o outro, para acoletividade, então fica alienado e distraído de seu projeto inicial, que é o de tornar-se “si-mesmo”. Inerte no cotidiano, o homem passa a viver uma vida inautêntica. Segundo Heidegger, a vida autêntica é aquela em que o homem atravessa o tempo numa empreitada constante de ser. A vida cotidiana é inautêntica, porque ocupa e distrai o homem ao ponto de impedir sua realização fundamental.

No argumento central das duas obras cinematográficas, a questão do ser está sempre presente. A tecnologia torna a questão ainda mais complexa. Isto porque os personagens principais das duas tramas são robôs, que, ao longo do tempo assumem a forma de ciborgs. Seres híbridos, com características humanas e ao mesmo tempo de máquinas orgânicas, inclusive dotadas de inteligência, memória (no caso dos replicantes) e sentimentos. Quem ou o que são no mundo humano? É a questão que se colocam. Dasein? No caso de Andrew, o androide, ao longo de duzentos anos, passa por transformações tão expressivas que chega a ser reconhecido oficialmente como humano. No caso dos replicantes, esse processo sequer é possível por uma decisão empresarial de seus criadores, uma vez tem sua vida útil limitada à apenas quatro anos. Ambos os personagens, ao longo dos respectivos filmes, procuram entender quem ou o que realmente são, especialmente porque encontram-se imersos numa sociedade de humanos sem o ser ou, ainda, sem serem reconhecidos como tais. Enquanto Andrew luta contra a sua própria imortalidade para se sentir inserido no contexto da sociedade humana, os replicantes, ao contrário, lutam ferozmente contra a mortalidade precoce a qual estão programados e que não permite o processo de hominização pelo qual passou Andrew. Em ambos os casos, os androides procuram se tornar humanos de forma a serem aceitos como tais. Ainda considerando a filosofia de Heidegger, podemos identificar em Andrew os conceitos de vida autêntica e inautêntica, quando depois de servir como máquina por décadas (vida inautêntica), o androide busca a sua liberdade, a sua identidade, quando sai da casa da família para construir sua vida de acordo com os seus anseios.
A questão da finitude da vida e da liberdade também perpassa o enredo de ambas as obras. Sobre essa questão consideraremos, como referência, o pensamento de Heidegger e Sartre:

Portanto, diante da angústia provocada pela consciência da morte, o homem podefugir do confronto com essa sua dimensão mais profunda e voltar aoesquecimento da vida cotidiana, ou pode utilizar a angústia para transcender o mundo. A angústia pode levar o homem ao autoconhecimento, uma vez que, diante da angústia, as coisas que geralmente afetam o homem perdem seu sentido.
Para Sartre (1987, p. 22), portanto, “é preciso que o homem se reencontre e se convença de que nada pode salvá-lo dele próprio”. Para uma melhor compreensão do significado do preceito que Sartre tomou de Heidegger para sua perspectiva existencialista, a saber, “a existência precede a essência”, é preciso reconsiderar o que significa essência, nesse caso. De modo geral, é possível afirmar que a essência é o que faz com que uma coisa seja o que é, e não outra coisa. (2017, p.118-119).

 Ao contrário dos seres humanos, no caso de Andrew, a morte não é uma possibilidade. Ele é imortal. Neste caso, a angústia que sente é justamente inversa à humana. É a angústia frente à perspectiva da imortalidade, num mundo de seres humanos mortais, finitos, onde acompanha a dolorosa decrepitude e perda das pessoas que mais ama, geração após geração, num círculo vicioso e, a princípio, infinito. No caso dos replicantes, a angústia é a impossibilidade da própria vida, já que estão condenados a um fim programado num espaço de tempo curtíssimo. Trata-se de uma inversão da visão existencialista de Sartre. Tanto no caso de Andrew quanto aos replicantes, a essência precede a existência. São robôs programados, que já possuem uma identidade, que, no caso de Andrew, pode ser alterada. Essa característica, porém, foi considerada pelos seus fabricantes como um defeito. No caso dos replicantes, a programação era mais completa, incluindo falsas lembranças. Ambos os personagens lutam, enfim, por liberdade. Para se libertarem de suas programações iniciais e adquirem identidade própria, em busca do próprio ser.
Por fim, outra questão que emerge em ambas as obras é a do preconceito. Em Sartre temos:
O homem não nasce homem, ele vem a ser homem, humaniza-se. Construímos nossa subjetividade porque em vários momentos de nossa vida precisamos ter com outros, tomar (pesar) suas opiniões em relação a nós e ao mundo e, a partir daí, fazer escolhas,considerando nosso(s) projeto(s). Essas escolhas são indubitavelmente nossas. Nocaso de nos escondermos atrás de algo ou alguém, para justificar nossas escolhas,estaremos, como diria o existencialismo, usando de má-fé.
O pior tipo de má-fé é aquele que resulta em preconceito, daquele que explorao outro e ainda justifica tal exploração, construindo uma imagem pejorativa dooutro. Isso fica bem explicitado na análise que Sartre faz do judeu, em sua obra Aquestão judaica. (2017 p. 123-124).

Em várias cenas, a questão do preconceito fica patente. Na situação dos robôs é mais evidente, uma vez que todas as máquinas são programadas durante o processo de fabricação e qualquer desvio de conduta em relação ao programado é visto como um defeito, implicando na destruição ou reprogramação do “equipamento”. O robô Andrew, inclusive, durante quase todo o filme se apresenta como: “isto”. Uma coisa. Um simples eletrodoméstico. Os replicantes, como o próprio nome diz, embora apresentem uma individualidade própria, são considerados, pelos humanos, como parte de um único grupo. Os personagens de ambos os filmes lutam o tempo todo contra o preconceito, tentando se inserir de todas as formas na sociedade. Tentando ser vistos como humanos e aceitos na sociedade, uma vez que possuem todas as suas características. Tanto que Andrew foi reconhecido enquanto tal. Os replicantes, por sua vez, em sua maioria, não tinham sequer consciência de sua origem. O final tanto de “Blade runner” como de “O homem bicentenário” é, também, semelhante, com a aliança entre humanos e androides, através dos respectivos casais de protagonistas.
Tendo em vista esta breve análise, podemos concluir que ambos os filmes, embora sejam enquadrados na categoria de ficção científica, buscam tratar de temas presentes na própria época de sua produção e induzir a uma reflexão. A narrativa, que utilizou um futuro próximo e a temática da inserção ou não dos androides na sociedade humana, é pano de fundo para a discussão de diversos temas atuais, daquela época e da nossa. Os androides representam a figura do outro ou de nós mesmos vistos por nós à distância e dentro da sociedade. Podemos relacionar os androides, por exemplo, à figura dos imigrantes, ou de pessoas de outras etnias vivendo em nosso espaço social. Há uma crítica social quando nos colocamos na posição do criador que é capaz de dar vida aos androides, mas não consegue dar um sentido a essa vida. Nem mesmo à nossa. Podemos ter uma tecnologia capaz de criar clones de nós mesmos, inclusive, em alguns aspectos melhores, mas não resolvemos questões como a pobreza, a miséria, a exploração humana e a destruição do nosso meio ambiente, tudo isso muito evidente em “Blade runner”. Há, ainda, a questão do medo de sermos dominados por máquinas. Más será que não vivemos, hoje, como máquinas? Será que não somos tão dominados pelas “forças de mercado”, como os androides nos referidos filmes? Será que não temos que lutar por nossa liberdade com a mesma contundência que os androides? O que realmente importa: termos um mundo de humanos ou um mundo mais humano? A filosofia deve levantar as questões e mostrar os caminhos. Nós, a humanidade, devemos escolher o caminho a trilhar.

Referências:

BLADE RUNNER (Original).Produção: The Ladd Company, direção: Ridley Scott;elenco:Harrison Ford, Daryl Hannah, Brion James, RutgerHauer e Sean Young. EUA.Ano de produção: 1982.

NESI, Maria Juliani; MARQUES, Carlos Euclides. Reflexão sobre o homem na filosofia. , Palhoça: UnisulVirtual, 2017.

O HOMEM BICENTENÁRIO.(Título original: Bicentennial Man).Produção: Columbia/ Touchstone Pictures, direção:Chris Columbus; elenco: Robin Williams, Sam Neil, Oliver Plat e EmbathDavidtz. EUA. Ano de produção: 1999


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